Garfaram a EBC: decisão autoritária que enterra anos de debates democráticos
Em resumo, é isso: levou-se anos discutindo qual a configuração de uma empresa de comunicação pública, passou-se por todos os trâmites anteriores da elaboração de um projeto de lei e, depois, dentro do Congresso, pelas tais comissões, audiências públicas, plenárias e demais tratativas. Ou seja, bem ou mal, a EBC a Empresa Brasil de Comunicação, é fruto de um debate democrático que resultou na Lei 11.652, de 7 de abril de 2008. Aí o novo governo, para mostrar que quem manda é ele, com uma canetada diz que esse lei já não vale. Típico de ditaduras, que começam justamente ignorando as leis construídas democraticamente.
Ok, sabemos que a grande maioria da população desconhece o que é a EBC. Esse argumento é usado pelos seus detratores para mostrar uma desimportância. Mas também a mesma parcela da população desconhece a Embrapa. E nem por isso querem transforma a empresa de pesquisa em almoxarifado do Ministério da Agricultura. Ou seja, o desconhecimento pela população não significa que ambas as empresas públicas são menos importantes para o país. Públicas? Ou estatais? O Congresso decidiu, em 2008, que a EBC fosse pública. A canetada autoritária mudou a sua configuração de um dia para o outro.
A história da EBC tem um marco importante, embora não inicial. O I Fórum Nacional de TV's Públicas, realizado em 2006, reuniu dezenas (isso, dezenas!) de entidades representativas da comunicação social que, desde a democratização do país, vinham lutando, entre outras importantes reivindicações, pela ampliação da oferta de canais de comunicação eletrônica, em especial com uma abordagem voltada mais para o interesse público do que para comercialização de espaços publicitários ou veiculação 'chapa-branca' dos governos de então. Na realidade, o que se queria era fazer valer a Constituição de 1988 que exige uma complementariedade entre os segmentos de comunicação comercial, estatal (que já existiam) e público (ainda a se construir).
Ou seja, a briga já é de antes da Constituição e prosseguiu com vitórias pontuais, com poucos, mas crescentes avanços. A Lei do Cabo, dentro deste espírito, obrigou as operadoras a oferecerem canais de acesso público de forma gratuita, e fez surgiu novos segmentos de TV que se tornaram importantes, como as TVs legislativas, universitárias e comunitárias. Aliás, foram as entidades que congregavam essas emissoras que fomentaram o Fórum que, por sua vez, após meses e recursos do Ministério da Cultura, formulou uma política de TV pública que iria resultar na lei da EBC.
Longe de mim dizer que a EBC é perfeita e já fiz críticas no início desta crise. A própria condução posterior pelos governos do PT comprometeram as boas intenções, incluindo aí as articulações que desmobilizaram as mobilizações do campo público de comunicação, tornando-as também dependentes do governo e, agora, quando se precisa de seu apoio, estão moralmente (quando não financeiramente) de mãos atadas. Mas os defeitos da EBC e de seus processos de construção - que não invalidam a obrigatoriedade e a necessidade de uma comunicação pública - de forma alguma autoriza a qualquer poder executivo desautorizar anos de debates e todo o trâmite no poder legislativo, só porque se tem algum complexo de rejeição.
E tanta falta de noção da ética democrática - ou muita noção, vá saber - que não se vê que no próprio Conselho Consultivo da EBC, ao que parece o principal alvo do novo governo, estaria a solução de seus problemas. Ora, se acredita-se que há em emparelhamento do PT na direção da empresa, ou qualquer outro problema de ordem administrativa, bastava acionar os seus muitos representantes no mesmo conselho para fazer a grita. O debate democrático dentro de um instrumento democrático daria muito mais uma verniz democrática a um governo que começa justamente carimbado por falta de representação democrática. Quando dá uma canetada como deu, a impressão é algo como "isso, já que não temos representação democrática, toma aí um pouco de ditadura!" (ou, vai ver, é esse o recado que o governo quer dar...ai, que medo!).
Além das manifestações no Conselho, a sua composição estava para ser mexida agora e, da mesma maneira, o novo governo poderia participar reivindicando de seus grupos que indicassem membros e participassem da disputa, onde também teria grandes vantagens. De fato, o início do Conselho começou conturbado, com indicações políticas em excesso, e desconectadas das forças da democratização da comunicação, mas os processos eleitorais mais recentes já mostravam a intenção do colegiado em corrigir as distorções. Ao invés de acabar com o Conselho, o novo governo daria uma contribuição muito maior de ajudasse nessa direção.
Empresas como a EBC e a Embrapa partem de modelos consagrados internacionalmente. E a EBC tinha o sonho, pelos seus idealizadores que foram batalhar e vencer (mesmo que parcialmente) dentro do Congresso Nacional, de ser como a BBC, da Inglaterra, algo como a melhor TV Pública do mundo. Claro que a EBC ainda é cheia de problemas, mas a BBC tem 96 anos, contra 8 da empresa brasileira. A BBC iniciou-se antes da TV comercial e virou referência de TV, ao contrário do Brasil e seu Assis Chateaubriand. Os ingleses pagam sem muitos problemas uma taxa exclusiva para mantê-la, enquanto aqui nem o que está previsto em lei é repassado para a emissora. A BBC é, em geral, parceira das emissoras comerciais, enquanto aqui as últimas encaram a TV pública como concorrente (o que é risível, pois é como a Casas Bahia considerar a feira de artesanato um problema para o seu negócio). Cabide de emprego político no Brasil não é exclusividade da EBC e menos ainda as polêmicas na programação, já que a BBC também já viu envolvida em várias.
Portanto, uma TV pública, além, é claro, de ser uma exigência constitucional, é uma ótima ideia e já funciona muito bem em alguns setores no Brasil. Mesmo para a TV comercial, seria uma alternativa que lhe tiraria a pressão por exibição de determinados conteúdos não rentáveis, como uma programação infantil, esportes sem tanto interesse publicitário ou mesmo os debates nas câmaras legislativas, além de documentários e coberturas jornalísticas locais. Além de servir de inspiração e laboratório de novos formatos, sem precisar gastar milhões com royalties e, nesse caso, bem próximo do que se oferece uma Embrapa. Para a população, uma oferta de programação diferenciada, que tivesse foco no seu interesse público e na sua necessidade de cidadania - e não na sua capacidade de consumo e, também aqui, não concorrente às demais emissoras.
A EBC teria muito o que melhorar, mas, com os passos lentos que caracterizam as evoluções políticas brasileiras, ia caminhando. Com o ato autoritário do novo governo repete-se outro costume tupiniquim: jogar a água suja da bacia com a criança dentro.
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