A Teoria das Cordas e a Reforma do Ensino Médio

Crédito: Pixabay CC0 Public Domain

Estou em grandes dúvidas. Quando é assim, me permito viajar na maionese. Daí, lembro que, se a Teoria das Cordas for real, em algum universo paralelo o governo Dilma não caiu e ela acaba de lançar uma Medida Provisória (MP) com a reforma do ensino médio idêntica ao nosso mundo. Idêntica porque a atual equipe do MEC não é muito diferente, essa reforma está sendo gestada há anos, os governos petistas também eram chegados a uma MP, e a urgência das eleições e dos números horrorosos do IDEB são também os mesmos. Assim, eu apenas compararia a grita das entidades sociais e autoridades educacionais. No que elas fossem coincidentes, opa, aí era para prestar atenção em qual caminho seguir. No que as mesmas entidades, apenas estando em mundo paralelo distintos, divergissem, bem, isso eu jogaria no lixo.

Porque o primeiro problema para discutir a reforma está em jogá-la em pleno Atlético e Cruzeiro. Me parece que o grita primeira foi "se é do governo Temer, soy contra" e vice-versa. Parte das primeiras análises foi pelo fígado, não pelo cérebro. Hordas de entidades acadêmicas e educacionais já cobriam de porrada a MP que nem tinha sido publicada e, portanto, não se tinha muita certeza do que lá estaria. Dane-se o que defendiam antes!

Não me parece que mudou muito o cenário, mas, pelo menos, me deu tempo para pensar no mundo real e tentar achar minhas próprias impressões. Inclusive fazendo o exercício básico de ler a MP, o que não me parece ser o caso de muita gente.

Para simplificar a minha vida, dividi em três caixinhas: o que é legal, o que é mais ou menos, e o que é muito perigoso.

O que é legal

Caramba, o Ensino Médio está na pauta!
Na boa, por pior que fosse a MP, finalmente o Ensino Médio entrou na pauta do brasileiro. Nem os números indecentes do IDEB tinham conseguido isso.

Alguém aí é contra uma reforma no Ensino Médio?
Não estamos discutindo um puxadinho, mas uma reforma completa. Não é o que todos nós queríamos? Ou só porque mudou o governo, ficaram as provas (chatas!) e sumiram as convicções?

Incentivo a especialização
Jovens já sabem o que querem da vida. Ok, um pouco de exagero (vide seção "o que é muito perigoso"). Mas, relativamente e da sua vida atual, sim, eles são capazes de indicar o que lhes interessam. Já se sabe se não tem qualquer apreço pela matemática espacial, mas ama as letras. Para que estudar, então, trigonometria? Na minha época, tal exercício ajudava o desenvolvimento do pensamento abstrato, algo hoje que os pré-adolescentes já fazem nos seus complexos mundo do Senhor dos Anéis e videogames. E, se um dia, ele precisar de um cálculo trigonométrico, bem, acho que deve ter softwares para isso, assim como saber qual a capital da Chechênia. A reclamação deles é que o ensino médio não faz sentido, no que há de mais bonito nessa palavra, de que eles não sentem nada ao estar em sala. Nada ou pouco tem a ver com o que eles gostam, idade maravilhosa onde a palavra gostar ainda é prioritária, em detrimento ao que precisa, essa palavrinha que vai oprimir a vida madura. Claro, como educadores, temos a obrigação da segunda, mas, sem a especialização, esquecemos a lição básica da educação, de que só se aprende verdadeiramente quando passamos pela primeira.

Papel da Base Nacional Currículo Comum - BNCC
Ao longo de toda a MP, me parece reforçado o seu papel. Fico feliz que, entre outras citações, é dito que será a base do Enem e demais processos seletivos. Seria também a base da formação dos professores, essa formação ainda perdida entre o ideal dos teóricos e o real da sala de aula, em geral bastante distantes. Embora ainda com muita coisa para discutir e aprimorar (me parece guarda-chuva demais e ampla como a reforma quer deixar de ser), a BNCC tem sido uma ampla discussão democrática e não pode ser desprezada.

Uso de créditos e de conhecimentos fora da escola
A MP prevê que disciplinas realizadas no Ensino Médio podem servir como créditos nos cursos superiores  Ajudaria, inclusive economicamente, o técnico em informática quando for cursar sistema de informação não ter que pagar por introdução a computação ou coisa do gênero.

Da mesma maneira, conhecimentos adquiridos fora da escola também podem ser reconhecidos no currículo. Se o jovem fez inglês a vida toda e passar em um daqueles testes oficiais, porque ele precisaria ficar entediado em sala? E quem já tem práticas comprovadas, atividades de educação técnica e cursos em outras instituições, intercâmbios e EaD poderão se beneficiar, tirando tempo e poupando recursos (algo que a MP prevê que deverá ser regulamentado).

Ambas as situações mostram uma visão de educação integrada e que o conhecimento não deve ser desperdiçado, assim como o tempo e dinheiro. Claro, o problema serão os critérios, e quem julga, pois dá um grande poder para aquele que decide. Daí a necessidade de uma regulamentação e fiscalização que o país mostra ser leniente. E estou assustado, pois essas previsões não tiveram repercussão, e ainda não entendi o porquê. Será que está todo mundo de acordo, ou tem alguma força sinistra por trás, ou é porque ninguém leu mesmo?


O que é mais ou menos

Ser por uma MP
A maior grita, me parece, é pela reforma ter sido baixada via Medida Provisória, esse instrumento do velho oeste, onde atira primeiro e pergunta depois. Sem dúvida, uma questão primordial para o país deve ser debatida democraticamente pela sociedade. Por outro lado, essa é uma das partes que a Teoria das Cortas iria ajudar muito. Afinal, os governos petistas usaram a torto e a direito as MPs, em assuntos muito menos urgentes e de maneira muito mais escamoteadas. Realmente, queria ver ser essa fosse uma MP petista, qual seria a dimensão da grita. Porque, convenhamos, há algo mais urgente nesse país do que a Educação? Além disso, o debate sobre essa questão está mais do que amadurecido depois de dezenas de anos debatendo em centenas de congressos acadêmicos, projetos de lei e suas comissões, programas de TV, sala de professores... Afinal, de quanto tempo mais a sociedade precisa para isso? Não seria salutar, finalmente, colocarmos um prazo? E, sim, 120 dias me parece razoável já que, nem a MP tinha saído, e o país já estava mobilizado.

Sejamos razoáveis: um projeto de lei do governo geraria tal comoção nacional? E não teria a enorme possibilidade de se juntar às dezenas de projetos semelhantes que morrem nos fundos das gavetas parlamentares esperando sua vez depois da votação da Dia Nacional do Arara Azul?

E também não sejamos maldosos em comparar essa MP com uma de CPMF, por exemplo, que teria aplicação imediata no bolso do cidadão. A medida tem prazos extensos de aplicação, não atinge o atual momento (como na maioria das demais MPs) e, se transformada em lei, até a aplicação total de suas prerrogativas, haveria tempo de novas emendas, resultantes de novas mobilizações, consultas públicas e o escambau.

O mais, portanto, é lembrar que o PT teve 12 anos para fazer essa reforma, e se não teve a vontade e/ou a coragem política, pelo menos debateu-se muito, dentro e fora do MEC, e a sociedade está madura para bater o martelo em parte significativa da mudança, e ainda com espaço para melhorias ao longo do processo de implantação. O menos, bem, o nosso Congresso tem enormes falhas de caráter e não dá para confiar em nada do que acontece lá, e uma MP favorece aos jogos escusos que a pressa convida.

Resgate do ensino profissional
Como se precisa de técnicos neste país! E deixar de pensar que ensino superior é a única porta para acessão social e financeira. O Enem vende essa falácia, e todo o sistema de ensino - público e privado - endossa. O problema é que o Brasil já tentou isso, pelo menos, duas vezes. E o que se viu foi, de um lado, o descaso pelo ensino técnico pelas escolas não especializadas, semelhante ao que acontece hoje com Sociologia e Filosofia, apenas cumprindo tabela e não reforçando, junto à sua comunidade acadêmica, as oportunidades que uma formação técnica dá. Por outro lado, o ensino técnico foi vendido como o ensino 'de pobre', para aqueles incapacitados de merecer o ensino superior, para que tenha sua atividade profissional apartada da elite intelectual. Se for a mesma toada...


Flexibilização
Esse, me parece, o item mais complexo. De positivo, o poder aos jovens de escolher o que lhe apetece, o que lhe faz sentido para as suas iniciais vocações. Um currículo de 13 disciplinas obrigatórias é quase que obrigatório que não se fará nenhuma com empenho. Mesmo boas ideias, com a introdução de Sociologia e Filosofia, em grande parte, se mostrou inócua, pois eram vistas pelos estudantes como aquelas disciplinas "fez, passou". A rejeição deve-se tanto por ser uma aplicação de cima para baixo (nunca foi uma reivindicação estudantil, desconfio que corporativa), como pela carência de professores e metodologias pedagógicas adequadas. A formação mais humanista, pretensão inicial, foi sufocada pela sobrecarga da comunidade acadêmica preocupada com Enem.

Mas não acredito que as 13 disciplinas vão sair fácil assim não. Vide o caso da Educação Física e Artes. Será uma batalha para saber quais farão companhia ao Português, Matemática e Inglês. Com lobbies poderosos por aí, é capaz é de aumentar. O ideal mesmo era deixar por conta da BNCC, como previsto na MP.

O que me impressionou foi a grita contra a flexibilização, com o argumento de que fragmenta e hierarquiza o conhecimento. Oi? A reclamação não é justamente que o conhecimento está tão fragmentado que tem-se tudo no currículo e o aluno acaba por não conhecer nada? Que é tudo tão diluído que o jovem não sabe o que hierarquizar? Ora, a fragmentação é justamente  a possibilidade de ampliar o diálogo entre os jovens e seu sistema de ensino. Aliás, desses movimentos contra a flexibilização não vi muita participação de entidades dos jovens, os principais interessados, embora talvez não fizesse diferença (vide "o que é muito perigoso").

Sim, a grande questão negativa será também as áreas de conhecimento, já que cada sistema poderá escolher as suas. Se, por um lado, há a enorme vantagem de que cada local possa fazer suas escolhas a partir de suas características, por outro o poder econômico maior ou menor, as influências políticas e tudo o mais poderão simplesmente limitar profundamente as escolhas dos jovens, condenando-os a, ao final de tudo, não ter escolha. Isso seria resolvido com muita fiscalização e empenho das redes, o que vai depender de estado para estado e da própria cobrança da sociedade. Então, a ver.



O que é muito perigoso

Ensino integral
Eu sei, tem um monte de estudos que indica a melhora da aprendizagem e tal. Mas estou muito desconfiado por quatro motivos:
a) nem aplicou-se a reforma da especialização, flexibilização e da BNCC e já se está querendo ampliar a carga-horária? Não seria melhor ver primeiro como fica essa que já seria uma revolução antes de implementar outra?
b) implica em grandes custos e, portanto, as mais variadas formas de desigualdades entre redes, as temidas possibilidades de privatização e/ou precarização do trabalho do professor para a carga-horária extra, aberturas para pequenas e grandes corrupções. Rapaz, onde se precisa de dinheiro, onde vive reclamando que não tem, como isso pode ser boa notícia?
c) não são poucas as denúncias de que, onde há o tal ensino integral, ele está mais para pseudo-aulas de reforço ocasionais e oficinas meia boca do que realmente um aprimoramento das vocações dos estudantes.
d) tiraria os jovens que já se encontram no mercado de trabalho. Quando não é feito de forma precária e exploratória, trabalhar é muito bom para ele e sua família.

Por outro lado, a MP deixa claro que será de forma progressiva e de acordo com o Plano Nacional de Educação - PNE. O que, em boa parte dos casos, é sinal de algo comum em legislações semelhantes: "a gente vai implantando e vê no que dá. Se ficar ruim, volta pra trás, e a gente diz que o Plano foi mal interpretado."

Participação dos estudantes no debate
Eles não costumam ser chamados. Seus atuais representatividades estudantis estão tomadas por facções partidárias, mais comprometidas em eleger parlamentares e causar constrangimentos às suas oposições do que realmente discutir a melhoria do ensino. Não consigo ver eles sendo representados pelo atual Congresso, onde a juventude já mostrou sua cara de filhinhos de papais políticos, apenas interessados em dar continuidade ao legado coronelesco de suas famílias. As honrosas exceções, dos jovens e velhos a favor da Educação, não me parecem com força suficiente. Tomara que eu esteja enganado.

Como vai se dar na prática
É muita coisa para tanta indefinição. Professores serão (re)formados? As escolas terão estruturas para ensino integral, modularização, salas e profissionais de psicopedagogia para vocação profissional, laboratórios técnicos e especializados? O ensino público verá uma oportunidade ou ampliará os seus problemas? O ensino privado fará seus nichos de mercado, filhos de muito ricos com opções ao gosto, a escola classe média alta vai brigar pelas áreas temáticas (especialistas em humanidades, outras em natureza),  as demais de acordo com seus recursos, não dando tantas opções assim? Só há uma certeza: vai ficar ainda mais caro.

As escolhas e a exclusão social
De fato, as escolhas feitas pelos estudantes pode levar a mais uma exclusão social, algo bem comum nas nossas políticas públicas. Como serão feitas essas escolhas? Será do tipo 'técnico em torneiro mecânico' nas escolas públicas e 'humanidades' nas escolas privadas? O interior do país terá apenas as disciplinas obrigatórias enquanto os centros urbanos é que terão variedade? A oferta de disciplinas será desigual entre escolas e redes, limitando as escolhas à espaços geográficos?

Há uma ênfase, talvez exagerada, no mundo profissionalizante, embora a MP queira que o estudante tenha um "projeto de vida". Mas, para isso, as redes deveriam ter uma estrutura de atendimento, os antigos orientadores vocacionais, para ajudar aos jovens, pois, de fato, eles não tem ainda a capacidade psicológica e cognitiva de perceber todo o quadro, algo que só conquistamos mesmo depois de duas décadas (no mínimo, tem gente que nunca!).

Conseguimos ver isso? Uma sala com um bom profissional, sentado com cada um dos estudantes (sem seletividade), dialogando sobre as possibilidades e o que seria melhor na escolha do seu currículo? Ou a tendência é colocar as disciplinas na parede da escola, um formulário quase apagado e uma orientação do tipo "marque suas opções e entrega na secretaria"?

Ou mais uma chance para separar as boas e as más escolas, aquelas que tivessem tal núcleo de apoio?

Como ajudar esses jovens, que suas escolhas sejam por afinidade, não pela dificuldade no fundamental ("nunca me dei bem em geografia"), o que apenas ampliaria suas dificuldades em superação?

Não sei se uma lei é capaz de resolver todas essas questões, mas seria excelente pensá-las enfaticamente.

Valorização do professor
Quase nada se fala do papel do professor, deixando tudo a cargo das tais redes. A desconfiança de que 'vai sobrar' é forte. O tal do "notório saber" como opção ao professor formado é uma porta escancarada para a precarização do educador e do ensino. A defesa que vi faz sentido, que seria para a educação técnica. Mas a MP não faz essa distinção, então será uma festa pegar o coitado do professor de matemática e fazer ele ensinar química, física etc.

Por fim, mesmo após esse meu próprio rol de queixas, ainda acho positivo. O foco maior, sendo um ensino médio mais aberto e menos engessado, deve servir de norte para todas as discussões. Ninguém é obrigado a concordar com tudo que eu escrevi, mesmo porque tenho também dúvidas sobre certos aspectos e acho que bons argumentos são capazes de me fazer mudar de ideia em alguns pontos. Mas é mais uma tentativa de esquentar o debate e fazer com que eu esqueça a Teoria das Cordas e me fixe nessa realidade, que já é complexa o suficiente.

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