Pokémon Go: é só um jogo.
Pokémon Go: previsão de inúmeros TCCs, dissertações e teses. CC0 Public Domain |
Abri um armário, encontrem um Pokémon. Ao abrir minha gaveta, lá estava mais um. Tinha um em cada degrau da escada... Mas, eu não baixei o jogo nem estava muito a fim de entender a modinha virtual. Porque então tinha um Pokémon junto à minha escova de dentes?
Meu filho de oito anos não tem celular, mas isso não foi o suficiente para impedi-lo de entrar na nova onda gamer. Na incompreensão dos pais de colocá-lo na contemporaneidade, ele criou sua própria realidade virtual. Pegou sua caixa com zilhões de cartinhas de Pokémon, as clássicas de papelão, e escondeu por toda a casa. Em seguida, nos deu... como chama isso mesmo, menino? ... ah, uma Pokébola! E daí passamos a 'capturar' os Pokémons. A mãe, ao arrumar a casa, foi um sucesso. Já eu, que não consigo achar meus óculos...
Assim, um fenômeno do qual eu estava querendo passar batido, me assaltou e, quando acontece coisas assim, querendo ou não, a gente se sente obrigado a pensar no assunto. Tenho uma forte convicção que é uma modinha. Mas, depois que achei meu quinto pokémon no meu porta lápis, fiquei um pouco na dúvida e fui me deixando invadir pelas notícias e prestando mais atenção nas ruas.
Estava no consultório e o médico estava mais interessado no aglomerado de ruidosos adolescentes do lado de fora da janela do que na batida do meu coração. Um grande amigo, psicanalista, caçava pokémons com a filha em uma praça, ambiente público lotado de jovens (alguns, nem tanto), em um vai e vem atrás de figuras inexistentes no real e somente presentes no mundo ideal dos smartphones. Fiquei pensando se meu amigo percebeu a ironia...
Engraçada também foi a reação de uma senhora que, ao encontrar um dos jovens completamente absorto em sua busca no celular, passou-lhe um pito do tipo "essa juventude está perdida". Me lembrou aquela velhinha da praça que ameaçava com um guarda-chuva... Nada mudou, ela continuou sua caminhada indignada e o jovem mal olhou para a senhora.
Já na mídia, relatos do fenômeno no mundo inteiro, tanto do sucesso de milhões de downloads em curtíssimo espaço de tempo, quanto de como poderia ser a tábua de salvação da suposta falida empresa que criou o jogo. Também a consequentes teorias da conspiração que me parecem óbvias: é lógico que o pagamento dos caçadores é a disponibilização de seus dados para a indústria do consumo. Ou alguém acha que tem almoço - ou caça - grátis?
Depois, começou a vida real sublimando a vida ideal: relatos de roubos, acidentes como atropelamento e gente caindo de lajes, o famoso espírito empreendedor do brasileiro com mototaxis e motoristas de Uber levando caçadores a pontos estratégicos, hackers criando bugs e vírus digitais. Complementando, as trágicas e previsíveis orientações da polícia, algo que nunca entendi bem quando resultam em algo do tipo "se você for roubado, a culpa é toda sua". É dessa safra a notícia de policiais prendendo jovens caçadores de pokémons em Cuiabá, "dois veadinhos catando pokémon de madrugada", como disse um dos nossos representantes públicos de segurança. Declaração de incompetência, despreparo, falta de noção de seu papel público, homofobia... dá para achar mais coisas em seis palavras do que pokémons em shoppings!
Tais encaminhamentos do tal fenômeno foram me deixando ainda mais desgostoso. Mas daí resolveram dar um certo verniz social ao Pikachu e família. Reportagens/ensaios/artigos ou algo do tipo, demonstravam por A mais B que Pokémon Go era um retrato da exclusão social porque na zona sul tem mais bichinhos que na zona norte... Ah, os pobres não têm oportunidade de caçar Pokémons como os ricos, já que suas regiões são desprivilegiadas de (coloque aqui o nome dos pokémons que conhece).
Parei! Quando foi mesmo que perdemos a noção para pensar a falta de estrutura mínima para a dignidade humana - tipo, esgoto, escola, posto de saúde, tudo digno, assim, sabe - chamar isso de exclusão social e ousar comparar com um jogo para celular? Será isso mesmo? Vamos parar de xingar o governo por não colocar um posto de saúde para xingar a fabricante multinacional por não colocar um bicho virtual na viela com esgoto aberto? E disso que estão falando nas redes sociais, nos portais e nos noticiários?
Gente, é só um jogo comercial, para fazer dinheiro! E se ele faz sucesso é justamente porque é um jogo bastante eficiente: atende as motivações pelo desafio, de afirmação no e do grupo social, de busca à infância perdida, do lúdico, pela ordenação do caos, da viagem ao intangível, à construção da fantasia, o atendimento ao desejo... pode escolher uma ou mais do que te faz ir atrás de um bicho que não existe. Importante é que nenhuma delas é expor e resolver as mazelas sociais.
Aliás, aproveitemos e que se pare também de dar ou acreditar em desculpas como "é ótimo para sair de casa", "faz com que as pessoas façam exercício", "fortalece os grupos sociais", blá, blá, blá! Tudo isso pode ser feito de outra maneira, e com atividades muito mais eficientes (vê se caminhar com um celular na cara é exercício físico, meu Deus!). Ou seja, que não se tente mais dar a um simples jogo - e, como me explicou meu filho, se tratando do universo pokémon, Pokémon Go é pra lá de simples - algo que ele não tem e não quer oferecer. Se quiser, jogue à vontade, com a despretensão de uma brincadeira de esconde-esconde.
Da minha parte, perdi a paciência de vez e agora nem caçar os de casa estou querendo mais.
PS.1: Se não convenci aqueles mais 'sociais', não que a gente não possa fazer algo. Um bom exemplo veio do designer Fábio Lopez que extrapolou um clássico e criou o War in Rio, uma versão, assim, digamos, mais real e social. Divertido e cruel.
PS.2: É tudo muito louco mesmo. Meu corretor ortográfico grita toda vez que ouso escrever Pokémon de maneira errada.
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