Internet será limitada sim! A discussão é que tá vazando água...
Presidente da Anatel, João Resende: ele não estava errado quando disse que a internet ilimitada acabou. Errado está é o debate. Crédito: Anatel |
Podemos espernear a vontade. Mas, de fato, a era de internet ilimitada está chegando ao fim. O problema é que essa discussão me parece servir a outros propósitos, mais escusos. Portanto, ao invés de brigar com o inevitável, temos é que lutar pelo evitável.
Não adianta chorar. Internet é como abastecimento sanitário. Ao invés de levar água e captar esgoto, transporta-se, em mão dupla, dados. Quanto mais água, maior a tubulação e a capilarização e, assim, mais custos de instalação, manutenção e ampliação. No tráfego da internet, é a mesma coisa. Achar que podemos receber quanta água quisermos e dividir a conta com todo mundo não está sendo aceito nem mais nos condomínios onde a prática era usual. Os novos edifícios já colocam um registro para cada residência.
Veja bem, não sou contra wifi fixo ilimitado, claro que adoro ele aqui em casa. Só estou dizendo que ele não é mais possível e não ficará do jeito que está. É a mesma briga dos taxistas contra dispositivos como o Uber e WillGo: posso questionar as questões legais, sociais e morais, mas o avanço da tecnologia é inevitável quando é dinheiro que está envolvido.
O que nos resta é outra briga, e não é contra a tecnologia. É pelo papel regulador do Estado sobre as tecnologias. Desde o desenvolvimento de qualquer tipo de Estado (tribal, feudal, déspota, democrático, republicano, ou a mistura deles), a tecnologia, como armas e sistema monetário, foi apropriada pelos governantes em benefício/malefício dos governados. Não há porque pensar que o trânsito de dados deva ser diferente. O que é diferente, em especial em países democráticos e estados que valorizem os direitos sociais, é a possibilidade do cidadão comum ser representado, protegido e beneficiado com as tecnologias.
Sou apaixonado por organizações como o Idec - Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor e Associação Proteste, que fazem um trabalho exemplar, na base da pressão social e no esclarecimento ao cidadão. Neste caso específico, fazem o que tem que fazer: espernear o máximo possível, mobilizar as pessoas, captar celebridades, dar mídia, entrar na Justiça... Me sinto plenamente representado por eles, haja vista que quem deveria estar fazendo isso (Ministério Público e o próprio Estado) não parecem encontrar forças para tal.
Mas acredito que nem eles se enganam que se trata de uma questão de tempo. Então, o que se tem que ser feito? Ora, a empresa que capta água, distribui e faz o saneamento básico é uma empresa como outra qualquer, mas tem uma concessão do Estado para fazê-lo. Ou seja, o conjunto dos cidadãos outorgam a essa empresa para que ela possa explorar esse serviço, ganhar seu dinheirinho, mas, como é um serviço público, há algumas contrapartidas sociais que ela, empresa, precisa cumprir para retornar parte dos benefícios que recebeu da população.
As empresas de telefonia, que estão herdando o sistema para uso de internet, sabem muito bem o que é isso. No tempo que telefone fixo era uma coisa importante para a comunicação social, uma contrapartida das empresas era colocar orelhões em todo o Brasil, dos lugares mais movimentados à comunidades isoladas e, nesses últimos casos, até de forma gratuita. Isso foi de uma inclusão social importantíssima. Portanto, a lógica que devemos exigir é a mesma.
No sistema de abastecimento sanitário, há contas sociais, aqueles que usam pouco nada pagam. Os custos pagos por muitos ajudam (ou deveriam) a levar saneamento àqueles mais excluídos financeiramente. Escolas e postos de saúde podem ser isentados. Com a internet, deveria acontecer o mesmo.
Mas quando a discussão parte para a qualidade da internet, vê-se que a discussão toma um rumo perigoso, se não de má fé. Ora, ninguém que recebe água ou energia elétrica está, ou deveria, se perguntando se a água e a luz que ele recebe é melhor que a do bairro vizinho, pobre ou rico. Portanto, a qualidade, prevista em lei, deve ser para todos. Assim é o Marco Civil da Internet: não se pode limitar quais dados devem ser acessados. Ponto final, sem mais questionamentos. Se uma página da Previdência, um filme no Netflix ou um site pornô. Essa é uma decisão do sujeito.
O processo é exatamente o contrário. Podemos começar a pensar em quais são os conteúdos que, obrigatoriamente, pretendemos exigir daqueles que utilizam da concessão pública de tráfego de dados, que não estejam no pacote de dados: páginas de governo, conteúdos da TV Escola e demais TVs Educativas, da TV Senado, TVs Câmaras e TVs judiciárias, todas seriam uma boa proposta. Um pacote gratuito, mínimo, para uma internet social. Isenção de escolas, hospitais e universidades públicas. Era isso que deveríamos estar discutindo, e não se a internet deve ser o que já se exige dela no Marco Civil.
É claro que a qualidade da internet deve ser debatida e cobrada. Sabemos que é um lixo, e que entregam uma parcela bem menor do que prometem. Mas isso é outra discussão, como discutir se a água está boa ou não para o consumo, e isso também é uma exigência para fiscalização, não uma espécie de contrapartida, que é para onde parece encaminhar o debate. Não se pode confundir o que já é legal com o que ainda pode vir a ser, sob o enorme risco de não termos nem uma nem outra, mas com um balanço lucrativo para as empresas de tráfego de dados.
É isso que se exige da Anatel e do Estado brasileiro como um todo. Que seja honesto, como foi ao dizer que acabou o tempo de internet ilimitada. Mas que honre o seu papel de agência reguladora e representante da sociedade ao exigir contrapartidas que não sejam apenas boas para as empresas, mas também para a população que, enfim, é que é dona da tubulação por onde passa a internet.
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