A crise da EBC: colhendo o que não plantou




Manifesto da ABTU em favor da EBC: a entidade sempre apoiou, mas o inverso nem sempre aconteceu. Crédito: ABTU
Era uma vez uma criatura, criada por criadores que a desejavam como um ente ainda mais forte que todos eles juntos e que garantiria a continuidade e proteção de seus valores e suas melhores intenções. Como de costume, a criatura alçou voos próprios e renegou seus criadores, acreditando que, agora, eles é que lhe deviam servir. Agora os aldeões (do mal) vem furiosamente incendiar a criatura e, sem quem lhe socorra, está bem próxima de virar churrasquinho. A metáfora perrengue é a EBC – Empresa Brasileira de Comunicação, o sonho da TV pública brasileira, que caminha velozmente para sua extinção. Resultado de dois principais conjuntos de fatores: o governo federal nunca quis efetivamente ter uma TV pública, e a própria EBC do alto de sua arrogância e presunção.

Partindo do princípio: é inegável a necessidade de uma TV pública no Brasil. Tão inegável que faz parte da Constituição, que prevê complementariedade entre um sistema de comunicação de radiodifusão estatal, comercial e, a novidade de 1988, o sistema público (art. 223). Deixa claro que uma coisa é ser gerida conforme políticas de governo, outra é ser gerida conforme os interesses públicos e sociais. Quem articulou, pensou, batalhou e aprovou esse artigo sabia da importância da TV na identidade brasileira, sua amálgama com a cultura nacional, para o bem e para o mal. Não se poderia ter um fator sócio/econômico/cultural como a televisão apenas sob os aspectos comercial e estatal, ambos, muitas vezes, distantes do verdadeiro interesse público e das possíveis contribuições sociais que têm em sua essência. Portanto, aqui defende-se a EBC. O que não se defende é a sua gestão que ajudou a levá-la a atual crise.

Lembro que o último capítulo da crise se refere a imposição de um presidente à entidade a revelia da lei. Mas, de forma alguma, é somente isso. Afinal, a empresa está sem presidente há meses, e o último presidente saiu justamente porque o governo não se conformava em manter um TV pública, e não mais uma estatal (poxa, a NBR já não basta?). E que é claro que, ao nomear, depois desses meses, um presidente a poucos dias de uma mudança radical de governo, nada tinha a ver com o respeito à empresa ou um gesto administrativo (se assim fosse, a substituição seria mais rápida). Portanto, o sinal era muito mais uma simbólica tentativa de resistência e que, evidentemente, soaria como uma provocação. E aí está um dos problemas: a EBC era para viabilizar televisão pública ou jogos políticos?

Um pouco de história que, como também de praxe, está enterrada para que não fique incômoda: a EBC só existe porque quatro instituições de televisões não comerciais um dia se reuniram em Belo Horizonte e resolveram fazer alguma coisa para tirar a Constituição do papel: ABEPEC – Associação Brasileira de Emissoras Públicas, Educativas e Culturais, ABTU – Associação Brasileira de Televisão Universitária, ABCCom – Associação Brasileira de Canais Comunitários e Astral – Associação Brasileira de Televisões e Rádios Legislativas, que se autodenominaram “campo público de televisão”, haja vista a variedade de configurações jurídicas que suas afiliadas tinham, mas todas com objetivo de fazer televisão pública. O único lugar que lhes deram ouvidos foi o Ministério da Cultura, do então ministro Gilberto Gil. E esse movimento – capitaneado pelos fóruns nacionais de TVs públicas, em especial o primeiro, em 2006 – resultou na legislação que criou a EBC.

E o que queriam essas entidades? Que uma empresa, verdadeiramente de gestão pública, pudesse ser uma espécie de guardião do sistema público, ainda mais recém-nascido e carente de forças próprias para o seu desenvolvimento pleno. E como eram muitos, mas fracos, talvez essa força pequena pudesse ser catalisada para uma rede maior e mais forte. Portanto, esperava-se da EBC que pudesse “estabelecer cooperação e colaboração com entidades públicas ou privadas que explorem serviços de comunicação ou radiodifusão pública, mediante convênios ou outros ajustes, com vistas na formação da Rede Nacional de Comunicação Pública”, certinho como está na lei 11.652, no art. 8, que estabelece suas competências. Não haviam dúvidas para as entidades que não tinha porquê criar uma nova rede nacional tradicional, como ‘cabeça-de-rede’ centralizadora e que, certamente, iria competir de forma desigual com as emissoras comerciais pela audiência. Estava claro que era preciso inverter o sinal, ao invés de cima para baixo, vir conteúdos e propostas das centenas de emissoras públicas espalhadas pelo país, que refletissem a diversidade brasileira e valorizassem o regional e o local, aliás também preconizado na Constituição e na lei da EBC.

No entanto, o que se vê hoje na grade da TV Brasil, da EBC? Quantos programas de TVs universitárias, comunitárias, educativas e legislativas lá estão? Quando a EBC representou suas criadoras nas diversas regulamentações que surgiram, como a Lei dos Serviços Condicionados? O que a EBC contribuiu, do ponto de vista dessas TVs, para a formalização do Canal da Cidadania, onde essas emissoras, assim com a EBC, ampliariam sua capilaridade pelo país? O próprio Conselho da EBC, mesmo com uma atuação importante, em várias ocasiões deixou claro que não as representavam. Aliás, quantos representantes dessas entidades estão no Conselho? 

Ok, pode-se creditar essa reclamação ao choro do ‘ninho vazio’, a síndrome dos pais que criam seus filhos, mas não se conformam com sua independência e os veem saindo debaixo de suas asas. Mas se a EBC tivesse realmente representando seu papel, talvez, nesse momento, o atual governo tivesse que enfrentar as vozes de mais de 150 universidades que produzem TV, as centenas de associações comunitárias que geram seus canais, a pressão político-partidária dos governos estaduais e das assembleias e câmaras legislativas. Com o ressuscitado Ministério da Cultura, funcionou.

Ao optar por ser mais uma cabeça-de-rede que manda e as afiliadas obedecem, e onde quem manda é a política de governo de então, se juntou às comercias e as estatais, e abriu mão da sua missão de gênese: possibilitar o sistema público. Em algum momento lá atrás, os dirigentes da EBC acreditaram que as TVs do campo público precisavam mais deles do que o inverso. Foram tão presunçosos que nem notaram que cada uma se virou de alguma maneira: as legislativas fizeram sua própria rede, se estruturaram enquanto força política e operacional e conquistaram inúmeros canais pelo país a fora. As universitárias e comunitárias, bem ou mal, têm sobrevivido e mantido suas operações, utilizando da internet para interagirem e progredirem. As estatais permanecem onde sempre estiveram, como veículos de governo e usando a programação da EBC como ‘calhau’, jargão publicitário que quer dizer algo como ‘coloca aí qualquer coisa para preencher o espaço’. 

Resultado: o campo público foi dando às costas ao longo do tempo, a EBC foi perdendo seu esteio, seu apoio fundador, e, com isso, suas próprias referências, minando a própria base que a fez possível, tanto no nível de seus ideais como no nível político. Sofre por colher aquilo que não plantou.

Duas palavras finais: como dito no início, foi determinante o governo federal também nunca querer ter, de fato, uma TV pública, embora o discurso inicial era criar uma "BBC brasileira". Do controle orçamentário – mesmo sendo chancelado por lei – à indicação de amigos do poder ao Conselho, quando já haviam possibilidades jurídicas para eleger representantes sociais, raramente a secretaria de comunicação social deixou de mostrar suas garras, e a saída do presidente no início do ano é um belo exemplo disso.

E que, obviamente, nada do dito aqui legitima o ato do governo interino de ir contra a lei, mesmo que usada de forma ‘espertinha’, o que, claro, está longe de ser uma exceção na política brasileira. Mas, se a EBC quiser sobreviver, e se algum governo e a sociedade quiser realmente uma TV Pública, a obrigatoriedade é voltar a sua gênese, para os objetivos que ela foi idealizada e construída. Não é difícil: basta consultar a Constituição e a própria Lei 11.652. Voltar para casa, como um bom filho pródigo alquebrado, também pode ajudar. O problema, agora, é que, talvez, a criatura não tenha a recepção, pelos criadores, que teve o personagem da Bíblia.

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