Deem voz a Pepe, Le Gambá. O mau cheiro não é dele!

 

Sonhando com cores: Pepe Le Gambá - personagem da Looney Tunes
Crianças não são idiotas para quererem ser malcheirosas e acreditar que, por amor, vale tudo. Já os adultos...
  

 Que o 'sem-noção' está virando o 'novo normal', já desconfio a tempos. Mas 'cancelar' um personagem fictício, de desenho animado, um clássico, me parece demais. Nada contra revisitar personagens, educá-los para os novos tempos - a cultura é mutante (nem sempre em benefício das pessoas, vá lá!). Tudo isso para introduzir um papo polêmico sobre o recente cancelamento do pobre Pepe Le Gambá, da Loney Tunes: banido de um filme onde seria coadjuvante e, pelo visto, de qualquer outra produção. Para os que não acompanharam a história ou desconhecem o personagem, Pepe é um Don Juan fracassado, que tenta, algumas vezes à força, conquista uma gata que, por acidente, se parece com uma fêmea da sua espécie. Tais atitudes, segundo alguns críticos, serviria de exemplo para as crianças como estímulo ao estupro e ao trato inadequado às mulheres. Seu cancelamento o equiparou ao Kevin Spacey, o que é uma tremenda injustiça (para o Pepe, diga-se). Ainda mais porque Pepe só estava fazendo o seu trabalho, malcheiroso, é verdade, mas alguém precisava fazê-lo: mostrar às crianças uma das peculiaridades humanas e suas consequências nefastas, de forma divertida, que é como melhor se aprende. Pois o tal cancelamento mostrou outra de nossas peculiaridades: o de destruir o que desagrada a uma parcela privilegiada e temporal, sem contextualização histórica, eliminando o que ainda se tem a contribuir, e utilizando-se das mesmas idiotice que o levaram à fogueira. Vejamos:

Essa história já começa antes. Mesmo antes da pandemia, a Humanidade já dava sinais de estar entrando em um estado psicodélico coletivo que nem o mais entusiasta hippie nos anos 1960 poderia imaginar quando profetizava a nova Era de Aquário. Mas, ao contrário que a turma colorida militava, uma harmonização coletiva entre todos os seres - humanos ou não, o que vimos foi um 'cada um por sua conta' que nos desligou da própria essência do que é ser humano. Indivíduos, sim, mas dependentes de coletivo(s). Essa desagregação nos lançou ao nosso eterno vácuo - quem sou eu? que faço aqui? para onde vou? - como gotas líquidas que se evaporam e se espalham sem um vento que as congregue novamente. A palavra 'noção' tem uma pegada no latim que quer dizer 'conceito, ideia, saber'. Ora, se não tenho ideia de quem sou - um sujeito coletivo - sou um sem noção, sem ideia, sem saber, ausente do todo.

Pepe Le Gambá, por exemplo, é um 'sem noção'. Mas ainda não quero chegar nele. Antes, voltado a 'ideia' e 'saber', o primeiro dos motivos que acredito que seu cancelamento mais prejudica do que ajuda é justamente porque dá trela a prática antiga da Humanidade, o próprio 'cancelamento' público de personagens (reais ou ficcionais). A cultura do cancelamento sempre existiu - da fofoca da esquina ao banimento da História nos documentos oficiais -, como mostra o excelente artigo do Rafael Battaglia, na SuperInteressante de março/2021. A questão agora é que, se os cancelamentos antes eram feitos por 'especialistas' (a fofoqueira do bairro ou o historiador contratado) - o que já era, em grande medida, injusto -, com a explosão das mídias digitais, todo mundo pode dar uma de especialista e sair queimando sujeitos nas fogueiras sem a necessidade de um inquisidor-mor.

Ora, sou terminantemente contra os tais tratamentos preventivos da Covid-19. Acho uma insanidade! Mas, só falo isso porque, majoritariamente, os especialistas da saúde me serviram de fonte fidedigna. Sim, foi uma coisa mesmo quantitativa: sei da existência de médicos que aprovam, mas perdem de goleada para sociedades médicas inteiras. Ou seja, não sou besta de dar palpite em uma área em que sou um completo ignorante, sem qualquer saber, ideia embasada sobre o tema, ou seja, um 'sem-noção'. Ainda assim, não me é suficiente para cancelar o meu amigo que acredita nessa insanidade - na esperança de que ele também não me cancele defronte as minhas próprias. Posso deixar de seguir alguém que defenda os tais remédios, mas da mesma maneira que não assisto o canal Combate: ali não me parece estar o melhor das pessoas. Mas respeito quem gosta e cada um segue sua vida.

Mas, como tudo, há um certo limite para nossas loucuras e me parece que fazer cancelamentos gerais e irrestritos a partir de não especializados - com especializados já é ruim! - depõem contra toda a nossa cola social e faz com que as gotas mais rapidamente evaporem e ficamos mais distantes e 'sem-noção'. O cancelamento de Pepe é exemplo dessa nova prática de cancelamento, dando razão ao que Umberto Eco já havia preconizado: as redes sociais dão canja demais para os idiotas! Não acredito que os especialistas que detonaram o personagem em artigos são idiotas, e tinham lá os seus argumentos que partiram de seus próprios conhecimentos e experiência. Aceito, embora possa não concordar com seus arranjos. A idiotice está em transformar suas opiniões em uma espécie de nova bíblia de costumes, ou de narrativas, sem que outros especialistas também sejam ouvidos. E os idiotas - que é provável sequer leram os artigos originais - utilizem do que escutaram e leram aqui e ali apenas para parecerem moderninhos e descolados (essa palavra é adequada).

Aqui, uma primeira dica: a escolha de um gambá, e não um lobo, já não deveria dizer alguma coisa? Uma criança realmente teria desejo de ser um bicho malcheiroso, que se dá mal em todos os episódios? São comuns bichos de pelúcia de gambá? Um especialista de desenhos animados lembra que, na mesma época de Pepe Le Pew, havia outro personagem, Lup Le Loop (incluindo a raiz francesa), um lobo bonzinho que sofria bullying de seus parentes. Um lobo, não um gambá. Precisa desenhar?

Sim, confesso que eu mesmo tenho alguns problemas para debater a temática: nunca experimentei o lugar da mulher para saber o que ela sofre. Mesmo que eu defenda o feminismo e saiba que vivemos em uma sociedade machista cruel, e que me esforce a defendê-las com todo o meu conhecimento, nada substitui as dores do cotidiano como melhor mestre. Outro problema da minha parte é uma certa covardia. Era um assunto que já tinha me angustiado no surgimento da notícia, mas só consegui partir para os teclados a partir da leitura do ótimo artigo de Felipe Motta Veiga, na Folha de S. Paulo, "Ninguém se torna assediados por ver desenho com Pepe Le Pew na infância". Ele me mostrou que eu mesmo estava caindo na armadilha do cancelamento, e que, se tenho algo a contribuir, calar-se é dar sua sequência: pois bem, sou especialista em desenhos animados e programas infantis, então, caramba, posso ajudar na defesa do gambá metido a galã.

Aí podemos voltar a ideia do Pepe como um 'sem-noção'. Porque outros argumentos o Felipe Veiga faz com muito mais propriedade e com ainda mais noção: que as críticas partem das premissas de que as crianças são idiotas e imitam tudo o que veem na TV (acho até que os adultos fazem isso mais), que todos somos idiotas e confundimos o que é ficção e o que é realidade (crianças tem medo é do que aparece nos telejornais, e não do vilão dos desenhos - e morrem de rir de sustos enquanto a gente tem taquicardia), que todo produtor de desenho animado é um pedófilo ou um perturbado mental que quer desvirtuar as crianças inocentes (quando só querem vender brinquedos e produtos licenciados, comprados pelos pais), que todo desenho tem que ser edificante e educativo. Em resumo, eu diria que Felipe diz o que entendi desde o princípio: esse pessoal não entende nada do que é desenho animado, ponto.

Portal WCB News: DE VOLTA PARA OS BONS TEMPOS: Bibo Pai e Bobi Filho Vamos lá: de novo, Pepe, Le Gambá, é um 'sem noção'. Personagens assim são muito comuns - e divertidos. Para tentar pegar alguns exemplos que passe por algumas gerações, tem o Patolino, o Pateta, Pepe Legal (voltamos nele daqui a pouco), Scooby-Doo e Salsicha, depois Johnny Bravo, Du, Dudu e Edu, e os melhores deles todos, Os Simpsons. E sabem por que eles são divertidos? Porque são 'sem noção', destoam do óbvio. Sabem quem são os mais 'sem noção'? Os pais! Lembre-se de algum desenho que assistiu (se nunca, o que é que está fazendo lendo essa crônica?): todos os pais são uns idiotas! Dos Flintstones e Jetsons, Família Dinossauro, até aqueles que sequer mostram os pais, como na Vaca e o Frango - os adultos são os que arrumam confusão! Nessas famílias, as pessoas mais ponderadas são as crianças (um ótimo exemplo, do tempo do Pepe, é Bob Pai, Bob Filho)! E por que isso? Porque é assim que elas nos veem. Elas não entendem - com razão - porque a gente perde tempo com tanta coisa inútil, tanto falatório sem sentido, tanto consumo dispensável, quando o mundo deveria ser só a soma de afeto com brincar.

Por onde anda o ator que interpretou o Tio Sukita? | VEJA SÃO PAULO

Pepe é um idiota, como vários adultos que as crianças conhecem. E o que acontece com os personagens sem noção dos desenhos? Se dão mal. E Pepe, em nenhuma das suas investidas, consegue o que quer. Apanha seguidamente e acha que está vencendo, quando qualquer criança sabe que é um bobalhão, só ele não viu que é uma gata pintada e que ela não quer nada com ele. Fico imaginando que a criança, caso ela presencie um adulto com aquele papo furado, vai pensar a mesma coisa de quando viu o desenho: "esse tio é um idiota, merecia uma bigorna na cabeça". O Pepe Le Gambá corresponde ao nosso Tio da Sukita. Alguém, criança ou adulto, almeja mesmo ser o Tio da Sukita?

  

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O gambá monocromático tem uma função, semelhante aos demais personagens que vão contra um manual de valores morais, e aí é que está outro grande motivo de chorar pelo seu cancelamento. A geração que o assistiu sabia que aquelas atitudes não eram uma boa, e que um desfecho provável era uma bigorna na cabeça. Outros desenhos também têm um vilão como personagem principal (Dick Vigarista, então...), mas, lembre-se, sempre se dão mal ao final. Eles estão ali para sempre humilhados ("raios, raios duplos!"), e humilharem essas que - "oh, dor, oh, vida!" - são nossas características. Inerentes e potenciais. Eu acho isso mais educativo do que cartilha do atual Ministério da Família.

Personagens infantis, ao final, são construções com objetivos simples, nada de tocar o video de traz para frente e descobrir que é um demônio colorido. Para simplificar, cada um deles é feito para representar algo, em geral ligada a uma idiossincrasia humana, como é o caso do Pepe - o amor como justificativa para tudo! Eu acho isso muito engraçado, irônico, sarcástico, sofisticado: nos consideramos seres de amor, mandamos memes de coração, fazemos romances, construímos utopias, tudo é em nome do amor! E por amor se violenta, por amor se oprime, por amor se mata. E o culpado é o pobre de um gambá fictício que está justamente mostrando parte disso para as crianças, já que os adultos não conseguem, ou não tem coragem para fazê-lo. 

Nessa toada, lembraram do Ligeirinho, aquele ratinho mexicano superveloz. É um estereótipo do mexicano. Como não há desenho que não parta de estereótipos, o que eu gostaria de saber era a opinião das crianças mexicanas, se elas gostam dele, se sentem representadas ou humilhadas por ele. Mas, importante lembrar, estereótipos pega todos. Outro desenho da época, Pepe Legal e Babalu, também tinha um cavalo como o estereótipo de cowboy americano, enquanto seu ajudante era um burrico mexicano. Mas o inteligente era o de sombreiro, enquanto o burro era o norte-americano. Cancela?

Os Simpsons' celebra 'dia internacional' e completa 30 anos em dezembro |  Pop & Arte | G1

Putz, se a moda pega, tem que tirar Os Simpsons do ar (aquilo ali é modelo de família?) e 90% dos outros desenhos, pois a graça deles é justamente a nossa desgraça. Talvez por isso os adultos se incomodem também com os desenhos animados da televisão e não com os filmes da Disney/Pixar. Enquanto esses últimos mostra uma visão edificante do que somos - como contos fabulosos - as séries são como crônicas, ao mostrar que a base é de barro, mas não menos divertida.

Conforme-se: as crianças acham que o que nos caracteriza como adultos é o verdadeiro 'sem noção' (e cada vez acho que eles têm mais razão). Sabendo disso, os roteiristas - esses sim, entendem de crianças - caricaturam aspectos que eles vão enfrentar quando crescerem. A gente depois reconhece os momentos, identificamos com eles e, por isso, tornamos os personagens um clássico. E como nossas idiossincrasias são da espécie, os bons personagens são imortais. Mas, como nossa caixa de Pandora é funda, é preciso, para as crianças, oferecer toda uma miríade de personagens - do que eles vão encontrar - e que, como em toda boa brincadeira, eles aprendam como enfrentar a situação pela experiência lúdica, semelhante os leõezinhos simulando uma briga, mas sem se machucarem. Quando alguém quiser fazer o que o Pepe faz, tomara que ela pense numa fuga rápida ou numa bigorna, e não fique acuada, envergonhada e paralisada como uma personagem romântica de tempos passados. Com o cancelamento do Pepe, estamos tirando repertório.

Porque Pepe ainda tem o que dizer. Ou sofrer e ser humilhado (não se preocupe, ele não se importa, é o seu trabalho). Porque os Pepes que ele representa ainda estão muito bem soltos por aí, e, idiotas que são, são mais animados que o Le Gambá. Cancelar o Pepe é perder a oportunidade de continuar utilizando-o para a sua função principal: esfregar na nossa cara que ele é um sujeito malcheiroso. Aliás, o que se diz é que era essa a intenção dos produtores do filme: ele seria esbofeteado pela heroína, teria uma ordem de restrição da Penélope, a gatinha, e ainda seria aconselhado pelo herói a mudar seu comportamento. Cancelaram a cena. Cancelaram também uma oportunidade que somente Pepe poderia oferecer nesse filme.

Como já escutei em algum lugar: ninguém é inútil totalmente. No mínimo, serve de mau exemplo. Pepe Le Gambá era o mau exemplo com quem nos divertíamos. Infelizmente, agora resta para as crianças os do BBB. Vale?


 Para saber mais sobre programas infantis!

 Editora Autêntica, 2007

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