A vilania em A Dona do Pedaço pode pedir música no Fantástico?

Estes marcaram golaços nos minutos finais... Crédito: Divulgação TV Globo
Eu gosto de TV. E, no Brasil, gostar de TV significava, até pouco tempo, gostar também de novela. Bem, eu perdi o gosto há um tempo, mas costumo voltar, de vez em quando, para me lembrar porque é mesmo que parei de gostar. Fui, então acompanhar o último capítulo da A Dona do Pedaço (os melhores capítulos são sempre o primeiro e o último). Fique abismado: não é que TODOS os grandes vilões se deram muito bem no final? Tá certo que o mundo não é mais tão bem e o mal, separadinhos, mas daí todos se safarem, e ainda no lucro? Onde esses roteiristas estavam com a cabeça? Vejamos...

Rapidamente: um assassino profissional (portanto, já em débito), mata um motorista e um policial e termina nos braços da amada em uma praia paradisíaca. Uma estelionatária de primeira grandeza não só não paga por seus crimes, como tem um upgrade na carreira e vira, ela própria, uma assassina profissional, por sinal, bastante eficiente e sem qualquer indício de que será presa. Por fim, a maior de todas as vilãs, uma psicopata digna de filmes hollywoodianos, além de matar o único dos grande vilões da trama que, verdadeiramente, se redimiu, encerra sua participação já armando seu próximo golpe e com um sorriso diabólico como assinatura.

Então, continuo apreciando a inegável qualidade técnica da novela brasileira, e ainda tento ver alguma coisa. Mas tenho gostado mais de acompanhá-las pelos críticos e acabo sabendo por lá o que está rolando. A Dona do Pedaço já havia me chamado à atenção por conta da confusão de meu filho que, querendo se lembrar do título, emplacou um "aquela novela, pai, a 'Fatia de Bolo'". E depois pelas críticas negativas de sujeitos que considero, como Daniel de Castro, Chico Barney e Maurício Stycer, no que fiquei ainda mais curioso. Alguma coisa diferente estava acontecendo. Mal eu sabia que era para o mal.

Não se encontrará aqui um defensor saudosista da época onde o bem sempre vencia, e onde os papéis eram facilmente caraterizados como heróis e vilões. Fiquei feliz com o desenvolvimento dos personagens ao longo da história da TV brasileira, quando foram ganhando opções mais degradê entre as cores do bem e do mal. A 'Escrava Isaura' e suas concorrentes foram muito legais, e contribuíram para consolidar uma indústria emergente, e é evidente que a luta do bem contra o mal pode até ser simplista, mas existe desde que começamos a contar histórias, e seu apelo para nossos corações é inegável.

Lembro que tal avanço nas narrativas para a massa não se deu só no Brasil, e nem mesmo só na TV. Ao longo das últimas décadas, os personagens do cinema, da literatura popular e infanto-juvenil, das HQs, perderam a aura acachapante de heróis e vilões e eles e elas, em alguns momentos, transitavam para o outro lado do seu lugar originário, mesmo que de forma desconfortável. Ora, bacana isso, somos assim mesmo, nem 100% bons, nem 100% maus, e a evolução cultural da Humanidade, que começa, a trancos e barrancos, a aceitar sua vocação pela diversidade, foi se espelhando na sua industria de entretenimento.

Mas daí também lembro que toda produção audiovisual se presta a um serviço. Eu imaginava que as novelas eram uma espécie de janela moral do mundo espectador, mesmo que, na maioria das vezes, atrasada. Não compactuo com as teorias de conspiração de que a indústria da televisão é o principal instrumento de manipulação dos costumes, como também não concordo com a visão relativista que ela é apenas um reflexo da sociedade. Como os heróis e vilões, a verdade costuma estar mais no 'entre' do que nas beiradas. Desta maneira, na minha imaginação, a novela seria o local para, assim como as fábulas, contar histórias em que as pessoas pudessem se enxergar, enxergar aos outros, suas crenças e valores sendo colocadas à prova, literalmente confabulando sobre a sua sociedade e si mesmo, mesmo que a partir de um mundo ilusório ou idealizado, socialmente distante ou próximo do seu, como Sucupira, Leblon ou Bom Retiro. E que, ao final, tais crenças e valores se mostrariam, mesmo que capengas em alguns aspectos, vencedores e fortalecidos. Em resumo: ser bom consigo e com os outros é legal, recompensa a razão e a emoção, e nos faz seguir em frente. Ser mal é egoísta, não ajuda nosso grupo social a caminhar, tira a gente do nosso foco natural de estarmos juntos e tentarmos evoluir para um bem comum.

Seria eu um romântico? Sei que sim, mas meu romantismo é baseado na observação humana: não somos seres propensos à solidão, precisamos desesperadamente do outro desde que nascemos prematuros. Portanto, embora a violência seja uma característica pilar dos humanos, o egoísmo não o é, ou não deveria, sob risco da própria desagregação de que fugimos desde o nascer. Aprendemos a ser egoísta, mas, assim como matar ao próximo sem forte motivo, são atos que vão contra o que construímos enquanto seres.

Quem é da época, ou quem estudou TV depois, tem como referência o Marco Aurélio (Reginaldo Farias), de Vale Tudo, novela encerrada em 1989, quando deu uma banana no último capítulo ao fugir do Brasil. Embora, acredito, não devesse ser o primeiro vilão de uma novela que não acaba nem morto, nem preso, tal cena ficou na memória dada a eloquência com que ficaram claras, não só a não punição do vilão, como também uma espécie de premiação. Foi uma comoção nacional, 'como assim, o bandido se dar tão bem?', mas sabe-se que fazia todo o sentido na ocasião, com a mudança de paradigma narrativo mundial, mas também com o clima de 'caça de marajás' daquele ano: os corruptos capitalistas estão se dando bem no Brasil e é preciso um caçador para acabar com esses aproveitadores. O resultado a história sabe, com a eleição de Fernando Collor e toda a confusão depois dele.

Opa! Então, o que será que esse final hat-trick da vilania nacional tem para nos dizer sobre nós mesmos, brasileiros, agora? Estou certo que há, como no final dos anos 1980, uma tendência mundial pelo individualismo, dado que tal atitude ajuda por demais a sociedade do consumismo. Mas como não há globalização sem nacionalização, será que também está ficando clara nossa preferência pela vilania, pelo egoísmo, pelo crime sem punição ou remissão? Cara, se sim, não devíamos acender o sinal de alerta e, da mesma maneira que as fábulas, começar a pensar em voltar a dar moral aos nossos valores humanos? Atentai, roteiristas, e ao seu papel social!que, me parece, resume as demais: conseguiu agradar e desagradar ambos os radicais do espectro

Por fim, não me venham com comparações com o filme do Coringa! Ah, lá o vilão também se dá bem (assim como outros filmes de vilões da cultura pop). Mas não se iludam. Um filme não é aplaudido em festivais, mesmo que começando o jogo perdendo de um a zero por ser fruto da indústria de HQs fílmicos, se não por suas qualidades. E, entre elas, destaco uma que me parece resume as demais: conseguiu agradar e desagradar ambos os radicais do espectro político-partidário: viram no filme algo para atacar e se defender. O que, para mim, consolida que é uma obra-prima, com múltiplas interpretações, inclusive atemporais, assim como todas as obras-primas.

Portanto, nada a ver com o final de A Dona do Pedaço. Não há qualquer nuance de interpretação, além do fato dos três criminosos da pior espécie terem se dado bem no final. Assim, convido-o/a a retornar alguns parágrafos e reler o título desta postagem. Merece?

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