Multiprogramação na TV: mais uma intenção a caminho do inferno
Sobre granjas e demônios: superando em metáforas para explicar a multiprogramação. |
A ideia da multiprogramação era fantástica. Com a TV analógica, tínhamos, quando muito, meia dúzia de emissoras de TV no sinal aberto, aquele que a gente não precisa pagar para assistir (o almoço é por conta dos anunciantes). Com a digitalização do sinal, por baixo, poderíamos ter umas vinte emissoras, dando à população uma variedade, se não tão grande, mas com opções do tipo que os assinantes de TV paga têm. Ainda com vantagens a mais: por ser eminentemente local, abrir-se-ia canais de comunicação audiovisual - de forte impacto, sabe-se - a segmentos excluídos dos meios tradicionais. Organizações comunitárias, sistema educacional, entidades culturais, eventos esportivos e artísticos locais, todos poderiam ter suas emissoras ou aparecerem em novas telas, oferecendo um conteúdo inédito ao seu público e a um público potencial. Pode-se imaginar a cobertura da feira de ciências da escola, as atividades da Apae local, os jogos estudantis, a orquestra da cidade, a procissão da Semana Santa, tudo isso sem a parca edição das emissoras tradicionais, que, quando mostram, dão escassos segundos. Mas não é que a multiprogramação, algo possível com a atual tecnologia, tomou, de vez, o caminho das muitas outras boas intenções: a casa do coisa-ruim?
Não, ela não foi para o Palácio do Planalto, mas lá ajudou a dar o empurrão final. E como a raça humana é chegadíssima a um paradoxo, os maiores beneficiários dessa trajetória satânica são... as igrejas! Em resumo breve, antes de contar a história inteira: aproveitando-se de brechas legais, quem está ocupando esses espaços, com incentivo estatal, são as igrejas evangélicas, estendendo àquelas horas alugadas nas emissoras comerciais de baixa audiência para uma grade completa. Para que sejamos justos, as TVs Católicas também não têm sido santas, como já gritei aqui. O que me faz pensar que, talvez, o problema não esteja só com as raposas, mas com o granjeiro que, deliberadamente, deixa a porta do galinheiro aberta para quem lhe melhor convir.
É mais ou menos assim: o espaço onde trafegam os sinais abertos é um terreiro público, mas, na época da TV analógica, era bastante limitado. Comportava ali uns doze poleiros, um para uma galinha e seus ovos (que, nessa metáfora agropop, representa, com sua riqueza nutricional, um pacote de informação). Mas tem um problema: não dava para ter doze galinhas. Bicho rebelde e arisco, fica pulando para cima, para baixo, e se colocasse a dúzia de galinhas, uma atrapalhava a outra e, ao invés de 12 poedeiras de informação, teríamos era uma omelete que não daria para entender qual era o ovo de quem. Por isso, só era possível se pudesse existir um espaço entre um poleiro e outro. Assim, mesmo tendo espaço para uma dúzia de cacarejantes, só dava para colocar a metade disso.
Com a implantação da TV Digital, a melhoria tecnológica profissionalizou a granja. É como se tivéssemos descoberto uma maneira de clonar uma galinha muito dócil, que só botava seus ovinhos e fazia sua publicidade sem atrapalhar ninguém. Como se não bastasse, as novas galinhas eram menores, mas mais parrudinhas, e botavam ovos mais fortes (embora continuasse com a mesma clara e gema como simples conteúdo). Assim, além de poder ocupar cada um dos poleiros, cada poleiro poderia ter até umas quatro galinhas. No lugar de seis galinhas, 42 poedeiras. Portanto, conteúdo/ovo que não acaba mais. E como aconteceu isso?
Na realidade, esse terreiro - oficialmente chamado de espectro eletromagnético - é valioso no mundo todo. Como sabemos, a informação - os ovos e sua sustentabilidade comercial pela propaganda - é hoje o bem mais inestimável da Humanidade. Já sabíamos disso em meados do Séc. XX, por isso, naquela época, começaram os estudos para maximizar o terreiro. Mesmo porque, agora tinha que dividir o tal galinheiro com uma categoria de agricultores mais ambiciosos, a turma da telefonia celular - que não venderia mais só ovos, mas também todos os seus correlatos, no que chamaríamos de internet. E já de olho na sucessão dos Gs, estando já na porta da 5a. geração.
Portanto, a digitalização do espectro onde passa a televisão aberta foi mais um 'chega pra lá' das telefônicas, e que, agora com as 'novas televisões' sendo transmitidas justamente por seus sinais, mostra que as supostas benesses dadas as tradicionais emissoras, como a multiprogramação, se equivaleria à troca de espelhinhos por veios de ouro. E estamos, nesse momento, envolto em dúvidas do que poderá acontecer: algumas das TVs mais endinheiradas investem para ser uma dessas 'novas', e competem com as flixs. Outras permanecem acreditando que é possível espaço comercial para o sinal aberto, e continuam investindo, visando um público viciado culturalmente e, principalmente, sem recursos para bancar tudo que é 'novo'. E há até quem quer fazer o caminho inverso, como o novo canal pago de notícias, o CNN, querendo achar uma emissora aberta para chamar de sua. Como, no mundo publicitário e de assinantes, não tem dinheiro para todo mundo, o que vai ficar ainda é um mistério.
Mas, olhando lá atrás, quando sonhamos com a multiprogramação, a ideia era dividir a granja, mantendo os tradicionais rendeiros, acrescentando os novos bilionários e ainda ter um cantinho para a agricultura familiar e seus ovos caipiras, que estariam ali para alimentar a fome local de cultura, esporte, educação, notícias, com mais tempo, abordagens íntimas com a audiência circunscrita no alcance dos seus sinais. Se a emissora regional não pode, ou não quer, passar a final do campeonato de várzea, exibir a sessão completa da reunião da Câmara dos Vereadores, transmitir em toda a sua extensão a apresentação o coral infantil, manter durante horas a cobertura de um desastre no centro da cidade, entrevistar personalidades por mais que 20 segundos, ora, deixemos que as TVs locais deem conta disso. O que farão com prazer e também com seus modelos de negócio locais, dando, inclusive, oportunidade do açougue local também possa socializar suas promoções, e competir com o hipermercado da capital que anuncia nas emissoras tradicionais.
Mesmo porque a origem da multiprogramação era o de dar vozes às diferentes culturas que convivem em um mesmo espaço: era a resposta tecnológica europeia - com países pequenos em território, mas com multiculturalismo em suas fronteiras - à obsessão norte-americana por qualidade técnica audiovisual, sem se preocupar com conteúdo. Lembro-me de ter aprendido isso quando a população de uma pequena cidade espanhola, quando perguntada sobre o que gostaria de ver na nova TV digital, respondeu que sonhava em visualizar a eficiência da comunicação dos sinos de sua cidade - que noticiava ludicamente desde festas à falecimentos. Fenômeno não desconhecido por populações interioranas como São João Del Rey/MG e admiradores do escritor Autran Dourado e os seus Sinos da Agonia.
Quando escolhemos um sistema de TV Digital que embarcasse essa tecnologia, foi com esse intuito: dar mais vozes e mais imagens a quem quer e precisa se conectar com sua população. Obviamente, também foi uma conquista possível, porque interesses comerciais da Rede Globo, naquela ocasião, via na multiprogramação uma maneira de escapar da armadilha que tinha se colocado no fracassado projeto de popularização da TV a cabo, e agora poderiam migrar seus novos canais para o sinal aberto. O problema é que não contava com a astúcia dos seus vizinhos, que também começaram a abrir novos canais no mesmo nicho publicitário. Assim, de um dia para o outro, os Marinhos deixaram de apoiar a multiprogramação, e seu ministro-mor, Hélio Costa, no primeiro governo Lula, a proibiu em todo o território, permitindo a sua exploração apenas para o executivo federal (o estadual de São Paulo conseguiu ser beneficiado por um limbo legal entre o que se tinha e o que o decreto 'global' fechou, e é a exceção).
No início da pandemia da Covid-19, ressuscitaram a multiprogramação, permitindo que, para se transmitir informações à população, pudesse ser usada para esse fim. Claro que não deu certo, as notícias que mais interessavam, as fakes ou não, tinham lugar mais eficiente nas incontroláveis redes sociais. Até pensei que podiam se utilizadas para as aulas remotas públicas, mas, para isso, seria preciso, de um lado, já ter uma estrutura operacional e, do outro, uma cultura de assistir outras emissoras que não as nacionais. Ou seja, se a multiprogramação já existisse como planejada, ela seria de grande utilidade durante a pandemia.
Mas, como vimos no início, os espelhinhos foram aceitos, os ovos quebrados, e as galinhas caipiras não encontraram espaço no novo terreiro. Os bandeirantes da família Raposa se apropriaram da granja, e continuam fazendo cada vez mais estragos. E mais uma boa intenção cai no colo do belzebu.
PS importante que descobri depois: O Estado do Maranhão arrendou um dos canais de multiprogramação da Globo para fazer justamente o que estava implorando aqui e não sabia que os maranhenses eram pioneiros: usar o sinal de multiprogramação para a sua TV Educação. O objetivo é a difusão dos conteúdos educacionais da secretaria durante a pandemia (algo que outras emissoras estatais estaduais fizeram, mas usando os seus horários e sinais regulares). Mas, apontemos as loucuras! Primeiro, o Maranhão tem um canal federal educativo, pertencente a EBC - Empresa Brasil de Comunicação e, portanto, uma das poucas exceções de autorização legal para uso de multiprogramação. Tem mais: a Universidade Federal do Maranhão é uma das poucas universidades públicas que tem um canal de TV aberta e, também como tal, poderia abrigar a multiprogramação que o estado precisaria. Aqui estou quase certo que a falta de estrutura, de recursos financeiros, mas, principalmente, de entendimento entre a universidade e a secretaria impediriam o acordo. Mas, daí o Estado do Maranhão teve que buscar um canal na Globo!! Que vá
para as cucuias o interesse dos estudantes maranhenses, muito menos
importante que a rixa entre o governador e o presidente da República e seus ministros! É dose a gente pensar nos maranhenses olhando para o céu e tendo DUAS emissoras educativas federais abertas, com possibilidade de multiprogramação, e indo bater na porta dos mais antigos coronéis da radiodifusão brasileira para pedir favor no sentido de ajudar seus estudantes durante a pandemia. Em um lugar um pouco mais civilizado, seria justamente a ocasião de se juntarem esforços para, por exemplo, fortalecer uma, ou ambas as emissoras estaduais! Por fim, a excelente iniciativa já nasceu com data para morrer, já que se baseia no tal decreto que descrevi acima e que permite o uso da multiprogramação pelas emissoras não estatais federais apenas durante a pandemia. Toda essa confusão só confirma que a multiprogramação tem um excelente potencial de uso de interesse social, mas que, como sabemos, não é prerrogativa para nossos principais dirigentes executivos e universitários.
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