TV Digital e as TVs religiosas: esculhambou geral!
TVs católicas foram pedir dinheiro a Bolsonaro em troca de apoio editorial: pelo visto, as antenas divinas estão dessintonizadas.... |
Quem
diria? Uma turma expressiva da Igreja Católica, essa mesma que adora se
contrapor às igrejas evangélicas (numa satírica inversão de lados da Reforma
Protestante), se posicionou ombro a ombro com também parte
de seus irmãos cristãos: os fiéis dirigentes de TVs católicas foram pedir contribuições financeiras ao
presidente Bolsonaro e, em caso de serem atendidos, nada de
"Deus te pague"! Os devotos empresários da comunicação se
comprometeram a se alinhar editorialmente com o Poder Executivo! Além do espanto (embora não surpreendente) do descaramento (afinal, uma concessão pública, legalmente, não pode se alinhar politicamente), a tal iniciativa
também me ajudou a relembrar um outro lugar de (des)conforto em que me encontrava: tem um tempo que parei de pensar sobre, afinal, o que aconteceu com os canais extras
que a TV Digital proporcionou e que os inocentes como eu acreditavam que seria
a oportunidade de ampliar a oferta de emissoras para a população?
Antes,
sejamos justos: nem todas as emissoras cristãs se alinham ao
movimento. E a Confederação Nacional de Bispos do Brasil - CNBB deu a
grita (embora há uma belíssima ironia, como lerão à frente). Não vou aqui entrar nessa questão, pois o acontecido aqui
serviu apenas para que eu revisitasse os sinais de TV Digital que chegam na
minha casa, em BH, após o desligamento do sinal analógico. Um pequeno estudo de campo que, acredito, pode ser espelho do que aconteceu no Brasil.
E porque a TV Horizonte, por qual tenho algum apreço, estava
lá no passar do solidéu.
Aviso:
tenho autoridade para falar, não sou um clássico opositor dos fiéis cristãos, o
que ajudaria muita gente a pensar "ah, esses pagãos comunistas, só querem
acabar com a fé". Sou católico, embora diga que seja apostólico romântico.
Junto ao fato de adorar também a televisão e o desenvolvimento local. Mas tenho uma relação dúbia com a TV
Horizonte, pertencente a Arquidiocese de Belo Horizonte: por um lado, tenho muito orgulho por ter uma emissora local, que
produz muito e que tem um histórico de ótimos programas como Caleidoscópio,
Educação em Movimento e o programa infantil TVX. Conheço alguns dos seus
profissionais e são gente competente, que acredita no poder de boas influências
do veículo, que querem trabalhar sério para usar a outorga pública em benefício
da população de Belo Horizonte. Mas, por outro lado, a TV Horizonte, além de
acabar com todos esses ótimos programas, ainda matou uma das melhores TVs
universitárias do país, a PUC TV, que, por sinal, a abastecia com outros ótimos
programas e uma equipe de acadêmicos entusiasmados. OS religiosos gostaram tanto que
engoliram a emissora e deixaram a universidade sem um dos seus principais
projetos de extensão. E lembra da ironia que escrevi acima? Pois o atual presidente da CNBB, Dom Walmor Oliveira de Azevedo, que protestou quando ao movimento das TVs, é o mesmo presidente da TV Horizonte, que foi lá vender indulgência. Há mesmo mais mistérios entre a terra e os Céus...Fim do interlúdio!
Pois então, voltando ao assunto, em
Belo Horizonte, a TV Digital ratificou e, significativamente, ampliou os canais
de UHF que já existiam na época da TV analógica. Para ver como ficou, fui
zapiar na manhã de domingo, dia 7 de julho, tanto na minha TV como no meu
aplicativo do smartphone para saber quais os canais em atividade. O resultado:
além das tradicionais emissoras ligadas as redes comerciais nacionais, mais a
Rede Minas, estatal educativa, encontrei surpreendentes 22 canais, sendo 20
definitivamente ativos. Veja, esse era o sonho dos movimentos por uma televisão
enquanto verdadeira comunicação social: saímos de quase um oligopólio de
emissoras comerciais nacionais, com pouca produção local, para uma variedade de
TVs, entre novas redes nacionais e emissoras locais, que pudessem diversificar a
oferta de televisão para a população, tal como é feito, em muito maior medida,
para os afortunados que podem ter uma TV paga. Em BH, seria sair de seis
emissoras para um aumento de 266%!
Burros
n'agua: 52% dessas novas emissoras estão ligadas a igrejas. E olha que nem
chequei se as 23% comerciais estão vendendo seus espaços para outras
agremiações (o que é muito provável). O disparate da ocupação é tanto que duas
das emissoras tem dois canais, onde passam a mesma programação
simultaneamente, o que eu chamaria de uma multiprogramação pateta
(multiprogramação que, para lembrarmos, é estupidamente proibida por decreto). Três emissoras são locais, o que dá um certo alento, pois geram empregos
e alguns programas legais, não tão intimamente ligados a doutrinação. Também
vale lembrar que triplicou a oferta de canais com programação educativa, em um
país que expulsou as crianças do sinal aberto para que elas pudessem monetizar
as TVs pagas. Igualmente, é excelente ter canais legislativos: a Assembleia de
Minas ocupa dois canais, mas com programação diferente, e o canal legislativo
da capital é o único com multiprogramação aprovada, e embarca também a TV
Senado e as TVs das Câmaras Federal e Municipal. O que é excelente para a
democracia.
Mas essas
boas notícias não devem minimizar o grande desperdício de espectro, tanto pela invasão dogmática das outorgas públicas, como a consequente exclusão digital de outras categorias de televisão: universitárias, comunitárias, de movimentos
sociais, de instituições ligadas a educação e cultura. Queria muito que
iniciativas como a TV Christiano Guimarães, produzida por alunos do
ensino básico de uma escola pública de Sabará, pudessem ser vistas em sinal
aberto. Se antes tinha-se a desculpa de que havia limitações instransponíveis
para o aumento de canais por conta do sinal analógico, se vê que, com a TV
Digital, o problema é de ordem político-partidária e damos continuidade a
ocupação de um bem nacional, o espectro de transmissão de sinais de TV, a partir
dos currais eleitorais, em especial aqueles ligados aos políticos das bancadas
religiosas.
O número de emissoras religiosas também é algo que se contrapõe à notícia que incentivou esse artigo: ora, se há tantas, e elas estão aí serelepes, com programação 24 horas, centenas de retransmissores, não faz sentido faltar dinheiro a ponto de ter que vender sua alma. Se o dinheiro anda escasso, que tal diminuir o número de emissoras das muitas 'cada-um-por-si' e congregassem (palavrinha bem adequada) para as poucas, mas fortalecidas? Claro, sabemos a resposta: Deus é por todos, mas cada um é por si.
Importante
lembrar que tal investigação que fiz em Belo Horizonte deve refletir pelo país
a fora. A capital mineira é considerada uma espécie de média nacional, nem tão
cosmopolita e exagerada como São Paulo e Rio de Janeiro, mas nem tão cidade
do interior que não possa representar onde a maioria dos cidadãos brasileiros
vivem. Tanto é que a cidade, historicamente, serve como campo de estudos para
lançamentos de produtos (associado ao desconfiômetro do mineiro, um pouco mais
fora da média nacional).
Estou insensível perante a pandemia e aqui falando de TV religiosa? Pois se tivéssemos uma oferta maior de canais locais, ou mesmo os canais religiosos preocupados com a função de uma televisão voltada para o interesse de seu público, a circulação de informações poderia ajudar, em muito, no trato do mal, inclusive nas suas consequências tangenciais. Fala-se da pandemia apenas nos conta-gotas dos telejornais das afiliadas das grandes emissoras, tão rapidamente e tão subordinada a política comercial nacional que mal dá tempo de humanizar os dados catastróficos. Se temos televisões locais comprometidas, essa seria uma temática constante, e com espaço suficiente para sufocar uma parte considerável das mentiras desnorteadoras. Hoje, os informes das secretarias de saúde são sumariamente editados para caber entre a previsão do tempo e os resultados do futebol, apenas para ficar num exemplo.
E quanto a educação? A Rede Minas teve que correr atrás para tentar ajudar a educação pública, algo desnecessário seria se já houvesse, em multiprogramação, um canal que já ofertasse conteúdo complementar, como acontece em outros países e até mesmo em alguns estados do Brasil. As demais emissoras locais, existindo e já no cotidiano da população, também poderiam ofertar horários para teleaulas, o que ajudaria demais no que se mostra o maior gargalo da EaD: acesso a internet. Também apenas para ficar em um único exemplo: imagine se a PUC TV ainda existisse e estivesse já ocupando um canal, ou parte da programação da TV Horizonte? Ora, poderia se unir a esse esforço local de transmissão de teleaulas ou videos de apoio educacional, tanto para a cidade, como para seus alunos e para os milhares de estudantes das escolas básicas católicas da cidade. E sem depender de qualquer barrinha de wifi! Por conta da quantidade de cursos e anos escolares, certamente não seria algo customizado, mas já serviria como um belo projeto extensionista, institucional e suporte educacional.
Por fim,
retornando a missão evangelizadora dos dirigentes das emissoras junto ao governo federal, não resisto a uma provocação religiosa: das oito geradoras católicas nacionais, somente
duas são devotas de Nossa Senhora. Pois não é que justamente elas foram duas das três que
não foram lá pedir benção financeira ao Presidente Bolsonaro? As redes Aparecida e Imaculada (a outra foi a TV Nazaré, de Belém). Obviamente, não significa que não apoiavam a proposta, mas me lembrei que a minha pegada católica
vem de uma formação marista, onde a principal inspiração é a mãe de Jesus. Não
pude deixar de fantasiar que, essas congregações ao serem convidadas a
participar dessa presepada, ao consultarem sua Devoção, tenham escutado, no fundo
do seu coração, alguns bons conselhos de mãe: do singelo
"ô meu filho, vai não, esse pessoal não é boa companhia para você!" até
um "de jeito nenhum, já pra dentro!"
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