TV Digital e as TVs religiosas: esculhambou geral!


TVs católicas foram pedir dinheiro a Bolsonaro em troca de apoio editorial: pelo visto, as antenas divinas estão dessintonizadas....Imagem de Anja por Pixabay
 
Quem diria? Uma turma expressiva da Igreja Católica, essa mesma que adora se contrapor às igrejas evangélicas (numa satírica inversão de lados da Reforma Protestante), se posicionou ombro a ombro com também parte de seus irmãos cristãos: os fiéis dirigentes de TVs católicas foram pedir contribuições financeiras ao presidente Bolsonaro e, em caso de serem atendidos, nada de "Deus te pague"! Os devotos empresários da comunicação se comprometeram a se alinhar editorialmente com o Poder Executivo! Além do espanto (embora não surpreendente) do descaramento (afinal, uma concessão pública, legalmente, não pode se alinhar politicamente), a tal iniciativa também me ajudou a relembrar um outro lugar de (des)conforto em que me encontrava: tem um tempo que parei de pensar sobre, afinal, o que aconteceu com os canais extras que a TV Digital proporcionou e que os inocentes como eu acreditavam que seria a oportunidade de ampliar a oferta de emissoras para a população?

Antes, sejamos justos: nem todas as emissoras cristãs se alinham ao movimento. E a Confederação Nacional de Bispos do Brasil - CNBB deu a grita (embora há uma belíssima ironia, como lerão à frente). Não vou aqui entrar nessa questão, pois o acontecido aqui serviu apenas para que eu revisitasse os sinais de TV Digital que chegam na minha casa, em BH, após o desligamento do sinal analógico. Um pequeno estudo de campo que, acredito, pode ser espelho do que aconteceu no Brasil. E porque a TV Horizonte, por qual tenho algum apreço, estava lá no passar do solidéu. 

Aviso: tenho autoridade para falar, não sou um clássico opositor dos fiéis cristãos, o que ajudaria muita gente a pensar "ah, esses pagãos comunistas, só querem acabar com a fé". Sou católico, embora diga que seja apostólico romântico. Junto ao fato de adorar também a televisão e o desenvolvimento local. Mas tenho uma relação dúbia com a TV Horizonte, pertencente a Arquidiocese de Belo Horizonte: por um lado, tenho muito orgulho por ter uma emissora local, que produz muito e que tem um histórico de ótimos programas como Caleidoscópio, Educação em Movimento e o programa infantil TVX. Conheço alguns dos seus profissionais e são gente competente, que acredita no poder de boas influências do veículo, que querem trabalhar sério para usar a outorga pública em benefício da população de Belo Horizonte. Mas, por outro lado, a TV Horizonte, além de acabar com todos esses ótimos programas, ainda matou uma das melhores TVs universitárias do país, a PUC TV, que, por sinal, a abastecia com outros ótimos programas e uma equipe de acadêmicos entusiasmados. OS religiosos gostaram tanto que engoliram a emissora e deixaram a universidade sem um dos seus principais projetos de extensão. E lembra da ironia que escrevi acima? Pois o atual presidente da CNBB, Dom Walmor Oliveira de Azevedo, que protestou quando ao movimento das TVs, é o mesmo presidente da TV Horizonte, que foi lá vender indulgência. Há mesmo mais mistérios entre a terra e os Céus...Fim do interlúdio!

Pois então, voltando ao assunto, em Belo Horizonte, a TV Digital ratificou e, significativamente, ampliou os canais de UHF que já existiam na época da TV analógica. Para ver como ficou, fui zapiar na manhã de domingo, dia 7 de julho, tanto na minha TV como no meu aplicativo do smartphone para saber quais os canais em atividade. O resultado: além das tradicionais emissoras ligadas as redes comerciais nacionais, mais a Rede Minas, estatal educativa, encontrei surpreendentes 22 canais, sendo 20 definitivamente ativos. Veja, esse era o sonho dos movimentos por uma televisão enquanto verdadeira comunicação social: saímos de quase um oligopólio de emissoras comerciais nacionais, com pouca produção local, para uma variedade de TVs, entre novas redes nacionais e emissoras locais, que pudessem diversificar a oferta de televisão para a população, tal como é feito, em muito maior medida, para os afortunados que podem ter uma TV paga. Em BH, seria sair de seis emissoras para um aumento de 266%!


 
Burros n'agua: 52% dessas novas emissoras estão ligadas a igrejas. E olha que nem chequei se as 23% comerciais estão vendendo seus espaços para outras agremiações (o que é muito provável). O disparate da ocupação é tanto que duas das emissoras tem dois canais, onde passam a mesma programação simultaneamente, o que eu chamaria de uma multiprogramação pateta (multiprogramação que, para lembrarmos, é estupidamente proibida por decreto). Três emissoras são locais, o que dá um certo alento, pois geram empregos e alguns programas legais, não tão intimamente ligados a doutrinação. Também vale lembrar que triplicou a oferta de canais com programação educativa, em um país que expulsou as crianças do sinal aberto para que elas pudessem monetizar as TVs pagas. Igualmente, é excelente ter canais legislativos: a Assembleia de Minas ocupa dois canais, mas com programação diferente, e o canal legislativo da capital é o único com multiprogramação aprovada, e embarca também a TV Senado e as TVs das Câmaras Federal e Municipal. O que é excelente para a democracia.

 

Mas essas boas notícias não devem minimizar o grande desperdício de espectro, tanto pela invasão dogmática das outorgas públicas, como a consequente exclusão digital de outras categorias de televisão: universitárias, comunitárias, de movimentos sociais, de instituições ligadas a educação e cultura. Queria muito que iniciativas como a TV Christiano Guimarães, produzida por alunos do ensino básico de uma escola pública de Sabará, pudessem ser vistas em sinal aberto. Se antes tinha-se a desculpa de que havia limitações instransponíveis para o aumento de canais por conta do sinal analógico, se vê que, com a TV Digital, o problema é de ordem político-partidária e damos continuidade a ocupação de um bem nacional, o espectro de transmissão de sinais de TV, a partir dos currais eleitorais, em especial aqueles ligados aos políticos das bancadas religiosas.

 
O número de emissoras religiosas também é algo que se contrapõe à notícia que incentivou esse artigo: ora, se há tantas, e elas estão aí serelepes, com programação 24 horas, centenas de retransmissores, não faz sentido faltar dinheiro a ponto de ter que vender sua alma. Se o dinheiro anda escasso, que tal diminuir o número de emissoras das muitas 'cada-um-por-si' e congregassem (palavrinha bem adequada) para as poucas, mas fortalecidas? Claro, sabemos a resposta: Deus é por todos, mas cada um é por si.

Importante lembrar que tal investigação que fiz em Belo Horizonte deve refletir pelo país a fora. A capital mineira é considerada uma espécie de média nacional, nem tão cosmopolita e exagerada como São Paulo e Rio de Janeiro, mas nem tão cidade do interior que não possa representar onde a maioria dos cidadãos brasileiros vivem. Tanto é que a cidade, historicamente, serve como campo de estudos para lançamentos de produtos (associado ao desconfiômetro do mineiro, um pouco mais fora da média nacional).
 
Estou insensível perante a pandemia e aqui falando de TV religiosa? Pois se tivéssemos uma oferta maior de canais locais, ou mesmo os canais religiosos preocupados com a função de uma televisão voltada para o interesse de seu público, a circulação de informações poderia ajudar, em muito, no trato do mal, inclusive nas suas consequências tangenciais. Fala-se da pandemia apenas nos conta-gotas dos telejornais das afiliadas das grandes emissoras, tão rapidamente e tão subordinada a política comercial nacional que mal dá tempo de humanizar os dados catastróficos. Se temos televisões locais comprometidas, essa seria uma temática constante, e com espaço suficiente para sufocar uma parte considerável das mentiras desnorteadoras. Hoje, os informes das secretarias de saúde são sumariamente editados para caber entre a previsão do tempo e os resultados do futebol, apenas para ficar num exemplo.
 
E quanto a educação? A Rede Minas teve que correr atrás para tentar ajudar a educação pública, algo desnecessário seria se já houvesse, em multiprogramação, um canal que já ofertasse conteúdo complementar, como acontece em outros países e até mesmo em alguns estados do Brasil. As demais emissoras locais, existindo e já no cotidiano da população, também poderiam ofertar horários para teleaulas, o que ajudaria demais no que se mostra o maior gargalo da EaD: acesso a internet. Também apenas para ficar em um único exemplo: imagine se a PUC TV ainda existisse e estivesse já ocupando um canal, ou parte da programação da TV Horizonte? Ora, poderia se unir a esse esforço local de transmissão de teleaulas ou videos de apoio educacional, tanto para a cidade, como para seus alunos e para os milhares de estudantes das escolas básicas católicas da cidade. E sem depender de qualquer barrinha de wifi! Por conta da quantidade de cursos e anos escolares, certamente não seria algo customizado, mas já serviria como um belo projeto extensionista, institucional e suporte educacional.

Por fim, retornando a missão evangelizadora dos dirigentes das emissoras junto ao governo federal, não resisto a uma provocação religiosa: das oito geradoras católicas nacionais, somente duas são devotas de Nossa Senhora. Pois não é que justamente elas foram duas das três que não foram lá pedir benção financeira ao Presidente Bolsonaro? As redes Aparecida e Imaculada (a outra foi a TV Nazaré, de Belém). Obviamente, não significa que não apoiavam a proposta, mas me lembrei que a minha pegada católica vem de uma formação marista, onde a principal inspiração é a mãe de Jesus. Não pude deixar de fantasiar que, essas congregações ao serem convidadas a participar dessa presepada, ao consultarem sua Devoção, tenham escutado, no fundo do seu coração, alguns bons conselhos de mãe: do singelo "ô meu filho, vai não, esse pessoal não é boa companhia para você!" até um "de jeito nenhum, já pra dentro!"

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