e-Contos Icônicos #7: Um homem invisível

Imagem de Amber Avalona por Pixabay

Todo mundo (des)conhecia aquele senhor. Sentado na mesa do canto. Tomando uma Brahma. Bem, todo mundo é um exagero da minha parte, imagino. A moça que lhe servia a Brahma todos os dias devia conhecer. Devem se dizer 'bom dia' todo dia. Ele não me parece um sujeito carrancudo, mal-humorado, do tipo que resmunga. Acho que se eu, ou qualquer um, chegasse, dissesse 'bom dia', se sentasse e puxasse conversa 'e esse coronavirus, hein?, acho que ele responderia educadamente, acho que até daria sua opinião sincera. Aliás, qual seria? Tudo isso em pensava ali, na fila. Olhando para aquele senhor que parecia invisível até para ele mesmo.

Fiquei pensando - a fila estava demorando, fazer o quê? - se alguém já havia chamado a sua atenção, 'senhor, nessa pandemia não pode ficar bebendo cerveja assim, impunemente'. Mas deve ser uma combinação com o dono do buteco. Cliente antigo, 'ele vem sempre aqui, toma sua Brahma, e depois vai embora. Não perturba ninguém'. Os policiais fregueses da coxinha grátis, política de boa vizinhança de 10 entre 10 donos de butecos, já também deviam (des)conhecer o tal senhor. Pra quê mexer com ele? Não parece disposto a aglomerações e se tem a impressão de que, se falasse com ele, que ele não poderia deixar ninguém se sentar na mesa, ele olharia sinceramente nos olhos de quem falasse isso e diria um 'tá' igualmente sincero. E tomaria um gole de Brahma.

"Naquela mesa tá faltando ele..." é a música que me vem na cabeça, mas não sei o resto da letra. Engenharia reversa: ele será pai de alguém? Um ou mais filhos largados pelo mundo, ressentidos ou com saudades dele? Será viúvo, separado, solteirão convicto ou, a esposa está em casa e ali o seu único momento de solidão. Nada na sua figura dá alguma dica. Suas roupas são ok, nem nova, nem velhas, estão limpas. Mas, para isso não é preciso muita gente: uma bermuda, uma cueca (imagino!), uma camisa polo, chinelos, uma diarista dá conta fácil. Ou terá um filho divorciado, uma mãe idosa, que dividem a vida com ele? Sei lá, sua história, seu contexto, também são invisíveis.

Não lê o jornal. Pelo menos nas vezes que o vi, embora ele esteja ali do lado, agora em companhia da máscara. Devo chegar depois que ele já fez a atualização. Me admira o olhar vago para fora. Imagino que, antes da pandemia, ele ficava numa mesinha no passeio do estabelecimento. Vendo a vida passar. Agora, é obrigado a ver pela moldura da porta, um corte significativo no seu ponto de vista vital. Ainda assim, parece ser melhor que brigar com a esposa, impacientar-se com a mãe, não saber o que dizer para a diarista, esperar pelo filho, olhar para o quadro da Santa Ceia herdada sabe-se lá de quem.

Pensando bem, o olhar não é vago, por incrível que me pareça. Muito menos tem aquele aspecto meio demente, de quem está perdido em outro mundo. Olha, é de quem está olhando alguma coisa! Só não consigo ver o que é, também me é invisível o que ele olha. Tanto podem ser os carros circulando lá fora, as roupas que trafegam, os seres que desfilam - faço isso, é legal -, quanto histórias e mais histórias que passam por sua mente. Vividas, imaginadas ou sonhadas. Ou nada! Não dizem que nós, homens, temos essa capacidade, de pensar em nada? Então, vai ver é nada... Nossa, como demora essa fila!

"(não sei o quê)... daquela vez como se fosse a última", me vem outra música na cabeça. O que me lembro dela é que falava de um sujeito triste, mas que podia ser vários ou todos os sujeitos tristes do mundo. Sim, ele me parece triste. Mas, daí, sem problemas, também estou triste, muito triste. Está tudo muito triste, da minha situação pessoal até a situação da minha cidade, do Brasil, do mundo... Outro dia li que estamos procurando vida em Marte para ver se a gente pode viver lá também. Porque aqui está ficando inviável. Então, também o universo está um lugar triste de se viver.

Será que se eu pedir para o moço segurar o meu lugar enquanto eu vou me sentar com o senhor para dividirmos nossa tristeza junto, ele deixa? Hum, não vai rolar, ele está em frenética atividade com o seu celular e é capaz de me olhar raivosamente se eu interromper. Ainda mais para pedir um favor que, certamente, não lhe é de seu interesse. Ter gente com raiva de mim nessa hora da manhã é algo que me deixaria mais triste. Melhor não!

Será que esse senhor tem celular? Consulta, de vez em quando, para saber se a filha mandou uma mensagem para saber se ele está bem? Para ver o resultado dos jogos que afetam a vida do seu time? Me parece alguém que teria dificuldade em digitar, não estaria, como eu, já moderninho, digitando com os polegares. Ou é puro preconceito meu. Pode chegar em casa e ser um ávido consumidor de internet, tem mestrado em e-commerce, tem NetFlix, Amazon Prime, Globoplay, Premiere, o escambau... E ali, aquele boteco é justamente o seu único momento off-line! Passou a vida inteira como corretor de ações, ainda gosta de acompanhar, mas está de saco cheio do mundo. Se bem, que eu também estou.

Não, não acho mais isso. Que ele é um ex-corretor, não que eu esteja de saco cheio do mundo. Deve ser um aposentado público, porque se fosse um do setor privado estaria num café, não num buteco. Caramba, como a gente fica preconceituoso numa fila? Fazer o quê, pensamento não tem moral, deve ser por isso que não consigo fazer meditação. Aliás, acho que esse senhor está fazendo meditação! Só não dá esse nome. Passei a invejá-lo. Ele consegue focar em algo - que não tenho a mínima o que seja, mas importa? - e só respirar. Até imagino que o gosto da Brahma para ele deve ser muito mais acentuado que para a maioria das pessoas.

Ufa, chegou minha vez! 'Dois pães, por favor?' Sim, butecos agora vende pães, pelo menos esse aqui que deu a sorte de ter uma padaria longe. Enquanto aguardo o pacote, olho uma vez mais para o senhor. Toma um gole da sua cerveja, me parece com prazer, a garrafa ainda está pela metade. Ou seja, ainda vai ficar um bom tempo por aqui. Bom pra ele, aqui fora tá dureza. Agradeço o pão. A caixa não olha na minha cara e nem diz 'de nada' já gritando com alguém que está faltando troco. O rapaz tira os olhos do celular para pedir um maço de cigarros, nem se deu conta de que eu precisava de um favor dele alguns minutos atrás. "Esses moços, pobres moços..." é uma outra canção?

Subitamente, dou uma parada na minha saída... será que... olho desalentado para a fila, ter que enfrentar de novo? Ah, não, comprei Heineken na compra passada. Ufa!

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