Inteligência Artificial encontra Clarice e Fernando
Tomando umas com Lispector e Pessoa. |
Na minha imaginação, encontro Clarice Lispector e Fernando Pessoa levando um papo. O lugar é bastante indefinido. Obviamente, me parece um bar, nem sofisticado, nem copo sujo, um do tipo de mesa de calçada, mas com o cuidado de não ter cadeiras de plástico. Fico olhando para os lados, na tentativa de definir se é o Céu - ambos mereceriam, certo? - mas também me parece indefinido. Afinal, a relação que ambos tinham com o Poderoso era um tanto complexa, mas também não era de negação. Quem sou eu, anos-luz dos milhares de especialistas em suas obras, para entender! Dou os ombros, humilhado. Sento-me numa mesinha ao lado, que também sei o meu lugar. E assumo aquele ouvido em pé de ficar escutando a conversa 'dosotro', que não seria da minha conta. Não me importo, ambos falam de Inteligência Artificial, assunto que nos interessa aqui.
Uma coisa boa na literatura é que nos permite sonhar. Esse terrível clichê é para justificar esse momento que imagino o inimaginável, dessas duas figuras que, conforme Luiz Ruffato, conseguem serem amados por públicos que geralmente se desprezam, os acadêmicos e o leitor comum. E teriam mesmo muito o que conversar. Talvez ali seja um encontro periódico, que fazem para colocar as novidades dos tempos em debate, pela suas visões críticas e cínicas, e algo mais além. Clarice, com o cigarrinho na mão, olhar e sorriso de diva, vendo Fernando chegar e já soltando na lata.
- Hoje é quem que chega?
- Bernardo Soares!
Fico pensando que Fernando deve ter um prazer místico por aqui, de se levantar pela manhã, abrir seu armário, e escolher um dos seus mais de 100 heterônimos.
- Ora, ora, que pena, um dia tão esplendoroso, e me vem vestido de desassossego?
- Os tempos não está favorável às esperanças, minha cara!
- Sejamos breves, então, para que possamos usufruir em conjunto nossas angústias.
É muito difícil entender essa frase quando ambos sorriem deliciosamente. Vai entender esses literatos!
- O que tens a me dizer sobre a tal artificialização da tal da inteligência, minha cara?
- Nada contra, mas ainda me duvido se algo a favor. Como disse quando em tempestade de minha alma, 'o futuro da tecnologia ameaça destruir tudo o que é humano no homem, mas a tecnologia não atinge a loucura, e nela então o humano do homem se refugia'.
Brincou, não é? Olho para baixo (o para cima, sei lá) e vejo nossa turma enfurnada, individualizada, louca, tentando se socializar pelos smartphones, pelos notebooks, pelas telas, desesperadamente sós em meio à milhares de amigos de fotos hedônicas. A computação não nos enlouquece, está provado que é mais provável o contrário. Foi o caso da Tay, robô criado pela Microsoft para ter vida autônoma nas redes sociais e, em menos de 24 horas, pirou o cabeção e se transformou numa ninfomaníaca racista e nazista apenas em contato com a gente. Programada para aprender e se desenvolver conforme interagia, mostrou que qualquer que seja a tecnologia, ela será demasiada humana em vários dos seus aspectos.
Não foi o que aconteceu com a 'maravilhosa' tecnologia do reconhecimento facial, que prometia revolucionar os processos de identificação, e que se mostrou racista? Não à toa artificial, artifício, ofício e arte, têm todos a mesma origem, embora em algum momento estúpido lá atrás resolveram divorciá-los. Mas mantêm suas características comuns e, no caso aqui, de reproduzirem e escancararem nossos rodapés melhor do que nós. Alguém tem que fazer o papel sujo de nos lembrar que não somos flor que se cheire.
- 'A artificialidade é a maneira de gozar a naturalidade', fiz Fernando/Bernardo.
- 'Na exigência de vida tudo é lícito, mesmo o artificial, e o artificial é às vezes o grande sacrifício que se faz para se ter o essencial', relembra Clarice.
Gosto dessa pegada, em Inteligência Artificial sempre me pareceu que a inteligência não era a parte forte da relação. Não é a melhor qualidade que temos. Ela já nos levou a destruição, beira de precipícios, se é que não o está fazendo agora, com a destruição do planeta. Quando mais comparo nossa inteligência com a dos demais companheiros da natureza, mais me convenço que o nosso grande diferencial foi a criação e desdobramento dos artifícios, da arte, dos ofícios, da artificialidade. Claro, foi preciso a inteligência para tal, mas, usando o exemplo da faca, o instrumento me parece sobrepor sua funcionalidade quando a inteligência deixa de utilizá-lo para um churrasco e vira apetrecho de feminicídio. Contudo, deixemos de devaneios e voltemos ao papo.
- 'A civilização é uma educação da natureza. O artificial é o caminho para uma apreciação do natural', completa o giro.
- Mas você mesmo quem disse que é preciso que nunca tomemos o artificial por natural.
- Decerto, minha cara. 'É na harmonia entre o natural e o artificial que consiste a naturalidade da alma humana superior'.
Literatura é loucura.
E agora vivemos malucos tempos em que se negam a tecnologia e a ciência que a abastece. O que também é loucura, onde quem acredita em ciência é o negado. Colegas meus escondem seu doutorado por receio de perder empregabilidade! Nem vou falar dos horrores terraplanistas e negação de vacinas, a pandemia já foi frustrante por demais.
- 'Não sei se é a mim que acontece, se a todos os que a civilização faz nascer segunda vez', continua em Pessoa. 'Mas parece-me que para mim, ou para os que sentem como eu, o artificial passou a ser o natural, e é o natural que é estranho. Não digo bem: o artificial não passou a ser o natural; o natural passou a ser diferente. Dispenso e detesto veículos, dispenso e detesto os produtos da ciência - telefones, telégrafos - que tornam a vida fácil, ou os subprodutos da fantasia - gramafonógrafos, recetores hertzianos - que, aos a quem divertem, a tornam divertida.'
Ui, olho para os lados, buscando lugar para me esconder.
- A opção é consciente, de não dizer toca-discos e radiodifusão? sorriu Clarice, dando uma tragada.
- Me interessa o básico: 'a beleza de um corpo nu só a sentem as raças vestidas. O pudor vale sobretudo para a sensualidade como o obstáculo para a energia'.
Clarice Lispector ampliar o sorriso dos olhos e brinda seu whisky com coca-cola com o bagaço de Fernando Pessoa. E eu vou cuidar da minha vida, que eles são mais do que eu dou conta.
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