Desenhos animados são orgulho LGBTQIA+ há tempo, mas agora chegaram de vez

Elxs sempre estiveram entre nós!

  Sim, as crianças são mais evoluídas do que nós, adultos. O que fazemos, em parte importante, é estragar o que nossa espécie tem de bom, na tentativa de bloquear o que temos de ruim. Acho que todo mundo sabe, ou deveria saber, que não nascemos machistas, racistas ou homofóbicos. Criança sabe, instintivamente, das semelhanças que nos une, mas também a enorme diversidade que nos caracteriza. O que, inclusive, foi um importante diferencial para sairmos da série D da natureza, para o topo da cadeia alimentar. Ainda bem que temos produtores de desenhos animados que, desde sempre, e disfarçadamente, nos deram, enquanto crianças, exemplos de nossa salutar pluralidade. Sim, na ocasião de comemorarmos a luta e o orgulho LGBTQIA+, vamos lembrar que pais eram tolinhos (e ainda o são) ao pensar que suas crianças não têm percepção sensível de notar a bela diversidade que nos compõem, e que se reflete nos desenhos que veem. Não foram muitos, mas foram importantes, e - como toda boa produção da indústria cultural - representava o que seu público via ou queria ver. E sabe por que ninguém prestava atenção? 

Porque as crianças não estava nem aí! Amigo, irmão, pais, vilão, heróis, dane-se se, por quem se envolvem é do mesmo gênero, da mesma espécie, do mesmo planeta! O importante são as aventuras, os sentidos e as emoções, a 'aventura de viver', para usar um clichê. O engraçado nisso é ver adultos hoje um tanto escandalizados com nossos personagens se revelando. O ótimo artigo de Leonardo Sanchez, De 'Bob Esponja' a 'Scooby-doo', gays estão saindo do armário em desenhos da TV, mostra o que já não era sem tempo de que tabu agora é cringe. A população LBGTQIA+ já é representada nos desenhos desde os anos 1960, quando há o boom das animações nas agora populares televisões pelo mundo afora. Ok, você não sabia disso, mas raramente alguém sabia. Os adultos não são muito bons de sutilezas, e as crianças, como dito, nada viam de anormal para poder se espantar e correr para a mamãe.

Para controlar a violência que nos motiva, os adultos criaram mundos morais que nos seguraram de um lado, e canalizaram nossa crueldade para a parte azeda do nosso caldo cultural. Ou seja, se é para ser violento, que sejamos com aqueles que consideramos diferentes do manual doutrinário que auto criamos. Enquanto não éramos treinados para essa estratégia fora de sentido, sem problema brincar com boneca e carrinho. Ou se eu tenho um piupiu, mas queria ter uma xereca. Ou, 'ah, posso ter de tudo um pouco?' Vamos sendo moldados, mas, talvez romanticamente, penso que, enquanto crianças, entendemos a nossa diversidade como algo natural, até que esse sentimento se transforma em algum obstáculo para a vida social. Se vou ser discriminado por acreditar nisso, e terei prejuízos ('menino que brinca de boneca é gay, menina que joga bola é sapatão, e ninguém não gosta disso'), melhor se trancar no armário e, para proteger a fechadura, cobrir com argila formatada pela sociedade e reforçada periodicamente por grupos sociais fóbicos, a tal ponto que até se esqueça o que lá está.

Assim, com a esperança de tornar essa fechadura mais frágil, na esperança de um futuro menos discriminatório, muitos produtores de animações foram deixando seus pinkseggs na história dos desenhos animados. Leonardo faz um excelente trabalho mostrando o panorama atual, mas acompanho programação infantil faz um tempo (ora do merchan, lei o meu livro!). E os produtores dos desenhos animados - sendo alguns deles LGBTQIA+ -, sabendo que criança não está nem aí para isso, encontraram maneiras de reforçar essa diversidade, com um recado meio do tipo 'não se apegue as diferenças morais entre mulher e homem: existem outras formas de ser, tão ou mais divertidas'. Vamos a elas!

Dos clássicos, também citado pelo Leonardo, acredito que a mais significativa era a Velma (1), do Scooby-doo, presente no imaginário de 10 das 10 crianças que assistiram desenho alguma vez na vida. Mas, alguém realmente se importava porque ela não fazia casal romântico com Salsicha, ou mesmo tinha ciúmes de Fred com Daphne (esqueça os filmes live-action, ninguém acreditou neles)? E agora sabemos que ela sempre foi lésbica (não bi, lésbica!). Veja que ela representava, muito bem, aquela/e nossa/o colega de escola, que, sem condições sociais de se expor, encontrava nos estudos sua válvula de escape, uma maneira de estar com os demais, construindo sua relevância em um mundo em que os heróis são binários. Mas fato é que essa 'estranheza' é que contribuiu para a dinamicidade da Mistério S/A, sendo o cérebro da equipe, e também a representante de toda criança/adolescente que se julgava diferente.

1a aparição da Pantera Cor-de-Rosa

 E será que ninguém se ligou que a Pantera Cor-de-Rosa (2) é um grande personagem não binário? Ora, tem todas as características de comportamento masculino, mas é uma pantera e é cor-de-rosa! Na sua origem, aliás, na vinheta do filme homônimo de Blake Edwards, ela até tinha algumas características femininas, mas rapidamente mudou seu comportamento. Sem traumas, muito segura de si, com alta estima lá em cima, como transparece na tranquilidade com que anda, bailando (aposto que lhe veio a música na cabeça - taram, taram... taram... taram, taram, taram, taram, taram, taram, taraaaaammmm....). Ou seja, não nos parece preocupada em se colocar marcadores 'masculinos' ou 'femininos' como definidora para sim mesmo e para os outros. Mais não binária, impossível! Mas, com todas essas características, não me lembro de ninguém protestando sobre a afronta aos bons costumes binários.

Tinha potencial para um trisal?

Embora não fosse desenho, também fazia parte da programação infantil a colorida, divertida e diversa dupla dinâmica, e seus vilões cheios de nuances fora do padrão moral vigente dos anos 1960. Ou vai me dizer que a gente não se divertia com os ciúmes do Robin quando via o Batman com a Mulher Gato? Acredito que a história da cultura pop já nos é familiar o suficiente para que não tenhamos dúvidas, por exemplo, que as relações entre mentor e pupilo se assemelhavam a dos gregos.

Da mesma época, um desenho animado que fez sucesso na Record (quem diria!), foi A Princesa e o Cavaleiro. A heroína Sapphire é um menino com coração de uma menina! E sequer havia muita discrição das partes, começando pelo próprio desenho do 'príncipe'. Paulo Gustavo Pereira, autor do Almanaque dos Desenhos Animados, lembra do sucesso que foi a série e que teve o privilégio de ter todos os seus episódios exibidos, inclusive o último, quando Sapphire casa-se com um príncipe Franz, que passou um bom período com um sentimento estilo Riobaldo e Diadorim. Nesse caso, com final feliz. Por muito menos, Grandes Sertão: Veredas e Guimarães Rosa eram deixados de lado por pais e educadores desconfiados. 

Aliás, alguém se perguntou se é por acaso que uma boa parte dos personagens dos mangás e animes têm um jeitão meio andrógeno? Isso se deve ao Osamu Tezuka, o criador da Sapphire, do Astro Boy, e trocentos outros personagens. Ele é considerado o cara do estilo mangá: não o que criou, mas o que popularizou. Os biógrafos apontam que seu estilo teve forte influência da cidade onde cresceu, Takarazuka, província japonesa de Hyogo. Ele tinha adoração por uma trupe musical feminina que, desde os anos 1910 e até hoje, encanta por seus musicais. A Takarazuka Revue, onde as mulheres desempenhavam os papéis femininos e os masculinos. Pode-se imaginar o impacto que o garoto teve em uma sociedade tão machista como a que ele vivia. Posteriormente, utilizando-se de uma das características da cultura pop - a de confrontar a moral de forma disfarçada - os mangás e animes, pelas suas pegadas filosóficas e existenciais, utilizaram-se da estética andrógena para dar o seu recado LGBTQIA+. E os pais nem desconfiavam. Afinal, eram só desenho e HQ mesmo!

Mas bastou acabar os libertários anos 1960/70 e só mesmo os animes baseados em mangás salvaram os caretas anos de 1980. Não consigo me lembrar de nenhum bom exemplo. Só os maus, como os constantes vilões da Disney com traços afetados - numa possível alusão aos comportamentos gays: de Hades, de Hércules, Jafar, de Alladin, passando pela Ursula, da Pequena Sereia, até o mais clássico de todos, Scar, de O Rei Leão. Há quem diga até que as Rainha Má, de Branca de Neve e a Malévola, de A Bela Adormecida, com o visual gótico, eram uma contraposição as meninas dos movimentos punks e similares. 

Mas, 1990 em diante, as coisas mudariam, até para a Disney, que, ao redesenhar ou refilmar seus clássicos, têm atendido uma era mais diversa e menos homofóbica. Tenho por mim que a cultura pop, e em especial aquelas destinadas às crianças, tem algo de vanguarda, meio que entendendo e estendendo o caminho que as coisas andam tomando. Como ninguém presta atenção em programação infantil, exceto as crianças, parece ser um lugar para experimentar, até mesmo porque serão os próximos consumidores, e é a eles que querem representar, assim como atender os seus apelos em se ver e ver seus amigos. Daí, foi um festival de novidades. Me vi puxando alguns de lembrança, além dos citados pelo Leonardo Sanchez, Bob Esponja e Betty DeVille (6), ninguém menos que a mãe dos famosos gêmeos Phil e Liu em Rugrats: os Anjinhos. 

Carmen Sandiego roubando corações
Vamos lá: é de 1995 os desenhos de Carmen Sandiego, baseado no game dos anos 1980, uma ladra internacional. É fácil encontrar na internet sua defesa como bissexual, usando seus próprios desenhos. Ela nem precisou ser muito repaginada para as suas novas produções do Séc. XXI. Em Futurama, de 1999, o ciclope alienígena é a heroína da série, Turanga Leela, mas é tão segura de si, e seu gosto por homens, que até a gente nem lembra que não há ciclopes mulheres. Nessa série do mesmo criador de Os Simpsons, o destaque ficou para Enos Try, avô do herói principal Fry, que descobre, ao voltar ao passado, que se antepassado faz parte da longa lista de gays que tiveram que se reproduzir por pressão social.

Dion, sem disfarces, é um gay de boa!
Outro desenho que lembro com carinho - por toda a sorte de pegadinhas sociais legais - é Sorriso Metálico, de 2001, a adolescente Sharon Spitz que tem que enfrentar o mundo depois de colocar o aparelho nos dentes (na realidade, é a menor das mudanças por que passa). Lá está o Dion, seu amigo gay sem qualquer disfarce. Já assistindo com meu filho, o popular e psicodélico A Hora da Aventura comprova, ao final, o que todos suspeitávamos: a princesa Jujuba nasceu para ficar com Marceline (4).
Rubi e Safira sendo felizes
Steven Universe
tem muito orgulho de suas amigas Rubi e Safira, e por ter ajudado na concretização de sua relação. Ah, e dizem, com muita convicção, que Rick, de Rick e Mory, é panssexual, dado a intimidade com que tem com as várias espécies interplanetárias sem qualquer preconceito. Aliás, me lembrei de um antigo, embora não esteja certo... voltemos depois.

Porque o meu preferido atual é, sem dúvida, The Load House. A história do menino com 10 irmãs, além de hilária e hiper antenada em um mundo que os homens devem se adaptar urgentemente num planeta cada vez mais feminino, tem não só um, mas dois núcleos LGBTQIA+: os pais superprotetores do melhor amigo do Lincoln Loud, Clyde, são os adotivos Howard e Harold (3), sem noção com todos bons pais de desenhos animados; e o casal formado pela irmã Luna e Sam (5).

E ainda tem mais coisas por vir. Estão já no piloto do live-action de As Meninas Superpoderosas. Estou apostando que a Docinho terá algo a mostrar. 

O triste nesses grandes avanços é que esses desenhos estão cada vez mais confinados às televisões pagas. Como as emissoras comerciais acabaram com os seus horários infanto-juvenis, colocando programas de variedade, somente os filhos de gente com melhor condição econômica têm oportunidade de ver a diversidade humana nos seus desenhos, em canais específicos. As emissoras estatais, que se arvoram de públicas, deveriam suprir essa lacuna. O fazem, em alguma medida, com desenhos regulares, o que já é alguma coisa. Mas, assim como é uma boa notícia o aumento de representantes LGBTQIA+ nos desenhos e na vida dos nossos jovens, desconfio que ainda é muito pouco para o que precisamos para consolidar uma sociedade verdadeiramente justa para todes.

PS.: Ao lembrar do Rick, fiquei aqui pensando em outro meu herói de infância, quase que o xará Capitão Kirk, de Jornada nas Estrelas. Ao que me consta, ele relacionou-se com alienígenas de diversos planetas, de todas as cores, e inclusive com androides. A marca em comum é que todas tinha um certo padrão estético e de gênero, todas curvilíneas e semelhantes às mulheres humanas. Isso faria de Kirk um pansexual cisgênero? É, temos muito que aprender...

Algumas das paixões do Capt. Kirk: grande diversidade alienígena para pouca diversidade estética

Agradecimento especial ao professor e amigo Roberto Reis, Consultor em Diversidade e Inclusão, que continua me ensinando muito. Aprenda também: Roberto Reis (ele/dele-he/his).

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