500 mil fantasmas nos assombram
As mortes da pandemia tem seu Nero, mas não colocou fogo sozinho. |
Tento fazer deste meu exercício literário um momento de descolamento da dura realidade que a pandemia da Covid-19 tem nos engolfado no último ano e meio. Assim, embora o mal esteja aqui e ali nas abordagens, é preciso que prestemos atenção em outras pautas importantes, nos campos da educação, comunicação, tecnologia, sob o risco de ficarmos monotemáticos e, em uma última instância cada vez mais próxima, todos pirados! Mas não há como fechar os olhos para a tragédia nacional: 500 mil mortos! São 1.852 barragens de Brumadinho rompidas! Ou se um tsunami simplesmente fizesse Florianópolis ser varrida do mapa! Minto, a analogia não é boa. Um tsunami não tem origem pela mão dos homens (por enquanto). Na realidade, é como se uma barragem da Vale tivesse soterrado Florianópolis. Aí sim, os responsáveis teriam nome e cargos, como têm hoje. Portanto, nem pensemos em comparativos subtropicais de Pompeia (250 vezes menor, diga-se). Nosso Monte Vesúvio são nossa classe política e nossa elite capitalista. Em comum com o vulcão, apenas que a vocação mortal desses grupos vem fervendo há algum tempo. E, da nossa parte, por mais que tenhamos visto a fumaça sair do topo e o chão estremecer, demos muitas vezes os ombros. Acreditamos que não era com a gente, e que Júpiter ou o Imperador Tito viessem salvar-nos. Uma parte desses mortos também são da nossa conta, Pompeia tupiniquim também somos nós.
Para ser justo, no nosso caso, há um delay de 'imperadores'. Vou aqui tratar de outros aspectos da pandemia que concerne à temática do blog: tecnologia, comunicação e educação (e seus etc), já que não faltam quem dê argumentos muito melhores que os meus ao apontar o dedo para o responsável principal. Mas não me seguro: aí faço um exercício de imaginação e, ao compararmos o principal líder com aquele de Roma, na ocasião da tragédia de Pompeia, seria preciso antecipar em 11 anos a explosão do Vesúvio. Teríamos no trono o suposto incendiário Nero que, mesmo não sendo responsável pela explosão do vulcão, poderia surfar nas suas ondas de lava. Muito ao contrário de Tito Flávio, que ficou conhecido pela generosidade com que acolheu as vítimas de Pompeia. Por mais que a história possa ter sido generosa com ele, duvido que ele tenha dito que era apenas "uma erupçãozinha", a população só foi calcinada porque ficou em casa, e que o melhor mesmo era, para quem vive ao redor de um vulcão, passar filtro solar.
Quando, portanto, comparamos nossa tragédia de meio milhão de mortos (3,5 vezes mais do que os mortos de Hiroshima; 6,7 vezes mais do que Nagasaki, e nem estamos em guerra), devemos fazê-lo com algo onde se pode ficar mais a vontade em usar a palavra genocídio: "extermínio deliberado, parcial ou total, de uma comunidade, grupo étnico, racial ou religioso; destruição de populações ou povos", lembrando a importância do plural, tanto para a Vale, que havia exterminado comunidades no entorno de Mariana/MG dois anos antes, quando a inúmeras famílias completas, e, ainda a saber, etnias pelo interior do Brasil, sempre mais vulneráveis.
E, da mesma maneira como a Vale, aqueles que ignoraram laudos ou deixaram de comprar e distribuir vacinas estão, neste momento, em confortáveis poltronas ainda mandando e desmandando. Mas, há de se olhar para trás e, tristemente, nos lembrar que, com exceção da população pobre e desprovida de recursos de participação popular verdadeiramente cidadã (que necessitaria de educação adequada, meios de comunicação integrada e acessível, instituições acolhedoras etc.), dali para cima todo mundo é um pouco responsável.
Não é de hoje que já andávamos trocando a ciência em benefício coletivo para o individual. Nossa busca ensandecida pela juventude eterna, pela imortalidade do corpo, pelo prazer incomensurável, pagando alto preço por isso, sinalizou aos meios de produção que o investimento estava no indivíduo, não no coletivo. Para cada pesquisa de como manter minha pele mais lisa por mais tempo, menos se investe em como achar uma vacina para a febre amarela. Para cada cientista que coloco para produzir uma nova tonalidade de cabelo, é menos um para descobri um novo fármaco para acabar com a dengue. Veja, foi preciso menos de um ano para desenvolver meia dúzia ou mais de vacinas, porque a classe média estava morrendo também. Porque, se o vírus fosse como nossa política de segurança (que também não é de hoje), e matasse só pobres, a história seria outra. Que o digam a malária, a febre amarela, dengue...
Acho fofo a classe média falar mal da classe média! Daí, na crise humanitária, todo mundo corre para os sites de doação, vira tudo santo! E a consciência fica aplacada. Mas, quantos pagam corretamente sua empregada doméstica? Tratam civilizadamente seus funcionários e lhe dão benefícios que não vão 'quebrar' sua 'empresa familiar'? Contribuem mensalmente com entidades filantrópicas? Ao invés do consumismo, dedicam-se ao consumerismo e reciclam? Jogam no lixo "o que já deu", ou dá aquela camisa puída para o jardineiro achando-se uma Madre Teresa de Calcutá? "Ah, e o que isso tem a ver com a pandemia?" Tem, porque é esse espírito de santo do pau oco que elege os políticos que, antes e agora, são causadores do genocídio. 'Meu pirão, primeiro', diz a classe média que, tomando vinho francês, acha um absurdo o pobre fazer isso (não tomar vinho francês - aliás, se ri do seu vinho 'doce' - mas, de buscar alguma vantagem imediata pelo seu voto). A diferença é que, ao invés de pirão, recebe uma cesta básica, que, sim, vai fazer diferença, pelo menos por alguns dias. E faz um muxoxo quando pensa que o rico, assim também o faz, mas, aí, "é parte do jogo".
Sou de esquerda, mas a nossa esquerda político-partidária também tem sua contribuição para o que vemos aí. No passado, teve a faca e o queijo para mudar, tanto a comunicação quanto a educação que, posto em prática o que havia prometido para eleitores como eu, parte do que vivemos hoje seria evitado. Primeiro, a comunicação pública eficaz, como acontece em países como a Inglaterra e Canadá, e até mesmo na vizinha Argentina, teria dado um pouco mais da comunicação verdadeiramente social, e que serviria de apoio a uma população carente necessitada de informação. No mínimo do mínimo, havendo uma rede paralela de meios de comunicação que não só os comerciais e os estatais, como TVs universitárias, comunitárias, educativas, os tsunamis de fake news teriam contrapontos com mais credibilidade. Mas, mesmo um governo de esquerda, colocou justamente um representante das emissoras comerciais como xerife, idêntico como agora. Também não é fofo escutar gritos de que 'a mídia é o capeta', tanto pela direita quanto esquerda, só dependendo de quem está sentado em Brasília?
Da mesma maneira, aconteceu com a educação. Ojeriza por ciência, vacina, terra redonda, não acontece de um dia para o outro. É resultado de uma busca maluca por formar - ou seria formatar? - jovens para um mercado de trabalho voltado para a meritocracia, e não para o desenvolvimento humano e cidadão, algo que ajudaria na sua construção enquanto eleitor e admirador da ciência, e não pelo o 'certo' e 'errado' de quem se arvora de 'méritos'. E essa opção foi uma batalha ganha, perante aqueles que, mesmo sendo de esquerda em um governo de esquerda, foram derrotados por uma solução mais 'pragmática', que pudesse nos colocar bem na fotografia do PISA (Programa Internacional de Avaliação de Alunos, em inglês, ranking mundial de escolarização, que não quer dizer nada se a anti-ciência e o apartamento social falam mais alto no país ranqueado). É inegável que tivemos avanços, como a entrada de negros e carentes nas instituições federais, mas, ao não garantir condições para o seu sustento, físico e intelectual - como se bastasse entrar em sala para estudar - é como entregar um carro sem combustível e com o IPVA a vencer. E, ao final, que diferença uma família negra inteira ter conquistado seu diploma universitário, se continuam tendo membros assassinados discriminatoriamente? Lembro: taí uma 'política pública' que teve 'apoio' de diversos governos, independentemente da cor da bandeira partidária.
E nossa elite econômica, que, sim, é ainda mais responsável pela sustentação dos políticos e das suas campanhas - assim como, ao lhe tirarem o sustento, os derrubam - e que buscam se vacinar em Miami ou em garagem de ônibus, na ilusão de que não é com ela. Quer mais coisa fofa? Briga para que seu funcionário pegue ônibus lotado para ir trabalhar, porque sabe que, se adoecer, o SUS se vira, ele contrata outro dos 14 milhões desempregados, e seu escritório é higienizado duas vezes por dia pela faxineira que já perdeu mais parentes para a Covid-19 do que o condomínio fechado onde vive. Só agora - esses visionários que arrotam tendências do que vamos comprar em 2025 - percebem a canoa furada em que nos meteram ao colocar o truculento segurança rebelde para tomar conta da chácara, mesmo que tenham ganhando muito dinheiro com o torneiro mecânico que o antecedeu.
Se tivessem usado seus coachings para prever os 500 mil (500 vezes mais brasileiros que morreram na II Guerra Mundial), talvez o processo de impeachment poderia ter corrido em velocidade a tempo de salvar milhares de consumidores. O presidente Collor só precisou de quatro meses e a presidente Dilma de seis meses para serem afastados. Se, em junho do ano passado, como elementos de insanidade mais do que comprovados, houvesse iniciado o processo de afastamento, e tal acontecesse em dezembro, quando o Brasil fechou o ano com 195 mil mortes (39% do atual quadro e quatro vezes mais soldados brasileiros na Guerra do Paraguai), com média de mil mortos/dia (quatro Airbus A320 - aeronave mais vendida no mundo - explodindo no ar, diariamente), há dúvidas que teríamos um quadro diferente? Agora, Inês e mais 300 mil se seus contemporâneos estão mortos.
E nós continuamos defendendo nossas algozes: que seja pedindo para abrir o comércio ou enchendo o portão de produtos, tragos por motociclistas que se arriscam diariamente para nossos luxos; seja dividindo forças políticas que só beneficiam quem está no poder; seja partindo para briga ao invés de tentar conciliar, ambos os lados utilizando as mesmas estúpidas estratégias de manipulação de dados e fotos; seja acreditando que está tudo sob controle e esperando tudo passar. Bem, não vai passar. Que aprendamos com a crise. Embora, não esteja com muita esperança.
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