Parei de dizer obrigado e por favor, e falo isso a partir de Marte!

 

Gentileza gera gentileza até em Marte! Imagem: Nasa.

Num mundo cada vez mais sem noção, não tive dúvidas em acrescentar um título sem pé nem cabeça. Mas, esclareço: o propósito, em tempos de pandemia e desnorteamento global, é falar como a força dos detalhes cotidianos – e a mudança neles – podem nos dar uma sanidade extra. E, na minha humilde opinião, a busca pelo afeto como solução, pode vir tanto de uma mudança de hábito cultural como da ciência que nos leva a Marte. Humm... acho que não ajudou muito! Bem, para pensarmos mais e matarmos a curiosidade, e também combater outro mal dos tempos – o imediatismo – melhor ler um pouco mais. Será que conseguirei defender um ponto de vista misturando peculiaridades linguísticas com um pioneirismo extraplanetário?

Tenha paciência, habitante de um país onde cultura e ciência têm sido negadas como um iogurte com prazo vencido. Os dois fatos distantes com que quero fazer um mexido são o uso do ‘obrigado’ e ‘por favor’ e a experiência do Ingenuity, o helicóptero que está programado para fazer o primeiro voo de um equipamento autossustentado na atmosfera marciana. Para quem está convivendo com pandemia e flerte com ditadura militar, missão em Marte e terra plana, convenhamos que nem estou tão destoante assim.

Então, primeiro quero oficializar minha recusa, de agora em diante, de dizer ‘obrigado’ e ‘por favor’. Tal decisão faz parte de um processo interno de, na incapacidade de fazer algo que presta fora das paredes da minha casa e acuado pela claustrofobia dos tijolos e da insanidade com que se conduz essa pandemia, acabei de revisitar uns troços budistas. E eles me lembraram que, na incapacidade de mudar o mundo, se cumprimentarmos o vizinho no elevador diariamente já seria um bom primeiro passo.

Como essa prática já me é usual, que mais poderia fazer? Pois tenho lido bastante (taí uma das poucas coisas boas da clausura), e não é que me caiu as origens da palavra ‘obrigado’? Já um tempo tenho-a usado com um certo incômodo, e uma grande inveja dos nossos hermanos. Mas estava sem ânimo e argumento para tão radical mudança. Com uma reportagem singela sobre as maneiras diferentes de se agradecer no mundo, descortinou-se aquele ‘eu sabia!’ e pude desmascarar tal expressão. Quando via os falantes das línguas espanholas responderem ‘gracias’ a algo que alguém tinha lhe feito, me fazia muito mais sentido do que esse militar ‘obrigado’, que remete a, uai, ‘obrigação’!

Ora, se fiz algo a alguém, de bom grado, por obrigação social ou remunerado para tal, aguardo que me lance uma resposta ligada não a uma relação de poder - mesmo que exista -, mas que remeta ao afeto. Não é porque eu sou carente, mas porque somos todos carentes desde que nascemos prematuros, incrivelmente dependentes do outro. Embora nosso desejo de pularmos de seres biológicos para androides e, com isso, alcançar a imortalidade, digo-lhes, sempre precisaremos de um abraço, de um aconchego, para sermos ainda humanos nem que na profundidade do meu processador. Pois então, acontece que darmos graças uns aos outros é o mais belo dos aconchegos linguísticos humanitários. Namastê!

Ah, e vamos elevar a palavra mais do que seu significado religioso. Graça, na real, vem do latim gratĭa que quer dizer 'agradecimento, reconhecimento, benevolência’. No grego, charis, ‘amor incondicional’. A gente acha também como sinônimo de ‘dádiva’. E a mesma origem de graça como algo que nos faz rir, olha que fofo! Não é muito mais legal quando encontramos o tal vizinho, estamos carregados e ele nos abre a porta do elevador? Porque obrigado, obligare em latim, é mesmo o que parece, uma maneira de ‘responsabilizar’, de ‘dever’. Ou seja, fico ali devendo uma obrigação. Não quero dever uma obrigação a minha esposa porque ela me trouxe um copo d’água. Mas quero muito expressar que reconheço que seu ato foi um gesto de benevolência e faz parte do amor incondicional. Claro, não preciso que o vizinho sinta isso por mim, mas prefiro que ele entenda como um reconhecimento de seu gesto gratuito (mesma origem, não à toa), que foi uma dádiva que ele fez ao ser benevolente com a minha condição.

E porque falamos 'obrigado' e as pessoas do outro lado da fronteira falam gracias? Aí fiquei imaginando que falar ‘obrigado’ é que nem usar gravata em clima tropical. E concluí, de forma altamente especulativa e imaginaria (desculpe, linguistas) que a origem é a mesma do terno: um termo que tem mais a ver com a colonização portuguesa, autoritária e europeia daquela ocasião. Porque ‘obrigado’ foi incorporado do castelhano, como o Cebolinha costuma agradecer. E olha só, vem do latim ‘obligô’ que quer dizer... ‘ligar’. Ou seja, alguém faz alguma coisa e, como uma boa relação de poder típica de uma cultura colonialista e capitalista, não tem almoço grátis: você continua ligado em mim, me devendo uma!

Volto correndo para o ‘graça’ grego, que também vai dar origem à ‘cáritas’, ‘caridade’. E aproveito o momento para também defenestrar o ‘por favor’ no expurgo linguístico do meu cotidiano, e pelos mesmos motivos. Agora, ao invés de ‘meu filho, por favor, vai tomar banho!”, muito melhor “Por gentileza, vai tomar banho?”. Dependendo dos seus hormônios de adolescente, vale até um “por caridade!”. Mas o importante é que tais palavras, ‘graça’, ‘gentileza’, ‘caridade’, me parecem muito mais com um sorriso, um aperto de mão, um abraço e, neste momento de distanciamento físico e máscara no rosto, ainda mais essenciais para que não nos transformemos, prematuramente, em androides. Se é para ficar algo depois, que fique essa mudança de hábito.

Mas não é melhor mesmo? “Por gentileza, pode abrir a porta do elevador?”, “Agradecido, tenha um bom dia”. Do contrário, meio que estou exigindo que “obrigado, tenha um bom dia”. Coitada da pessoa, como se ela já não tivesse cobrança suficiente na vida, o careca do vizinho ainda lhe passa essa obrigação, só porque abriu a porta do elevador. “Da próxima, me escondo atrás da pilastra!” Veja que até os norte-americanos, e seu pragmatismo produtivo d‘o que ganho com isso’, usam ‘thank you’ que também quer dizer ao algo como ‘graças à você’. Os caras até tem um feriado só para agradecer (Thanksgiving Day).

E o que isso tem a ver com o helicóptero em Marte???? Porque, esta semana, informado pelo meu ídolo Salvador Nogueira, colunista do blog MensageiroSideral, fico sabendo que a experiência pioneira do Ingenuity (‘engenhosidade’, para não perder a mania) tem um detalhe que, para mim, é mais do que uma demonstração de afeto, carinho, graça, justamente em uma área, a Ciência, onde detratores e mal informados costumam dizer que é fria, calculista, completamente racional. Mesmo tendo que fazer diversas engenharias de cálculo para tirar todo o peso possível e facilitar o seu transporte e decolagens num ambiente inóspito, não é que acharam um espacinho para um pequeno pedaço de tecido do primeiro avião dos irmãos Wright que, em 1903, fez também seu primeiro voo autossustentado? Precisar, não precisava, mas não é uma bela demonstração de afeto com a história? Com os personagens? Com a Humanidade e seus sonhos? Isso acontece porque a Ciência, quando feita pelas pessoas certas, tem esse o potencial de, também, mostrar o que temos de melhor, e esse melhor passa pela emoção do afeto. Tomara que dê tudo certo, que a Inge possa auxiliar sua carona, o Perseverance, corajoso jipinho que vai desbravar os solos vermelho.

Agradeço às engenheiras e aos engenheiros pela caridade de nos lembrar o essencial, no meio disso tudo. Por gentileza, e não por favor, não parem de fazer isso. E você que chegou até aqui, espero que não o tenha feito por obrigação, e que, ao final, tenha tido seus momentos de graça. 

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