Brasil alcança a Idade Média

 

Saímos do atraso de não termos nosso período medieval. Imagens: Pixabay

 Invejosos, esses tais brasileiros! Não tendo uma Idade Média para chamar de sua, resolveram construir uma só para si, em pleno Séc. XXI. Vejamos: tal período da História é marcada por fome, peste e guerra, e uma brecada forte no desenvolvimento de tecnologia. Só para incitar a leitura: cresce o número de pessoas com fome no país que bate recordes na agropecuária; somos recordistas de mortes violentas no mundo, com 12% delas acontecendo por aqui e temos os mesmos 12% de todas as mortes na pandemia da Covid-19, mesmo sendo apenas 2,7% da população do planeta. Para arrematar, uma em cada quatro famílias brasileiras agora cozinha com fogão de lenha, quase 30% a mais desde 2016. Mas tem muito mais, inclusive na política. A campanha 'Por que o Brasil não teve sua Idade Média?' é forte já alguns anos, mas intensificada, pois o país não pode parar. Mas sabemos que tal período histórico, embora alguns digam que se encerrou em 1453, antes do início da gestão eurocêntrica que mudaria a razão social de Pindorama para Brasil, é só uma questão de opinião, assim como a Terra Plana. Portanto, deixemos de ser maricas e vamos encarar nossa própria idade das trevas. Vejamos:

Sim, estou de mal humor, mas até o mais fleumático dos otimistas perde as estribeiras de vez em quando. Como se viu no parágrafo anterior, é uma desgraça por dia! Mas, finalmente, agora entendi que há um propósito de marketing por trás, a de resgatar nosso direito a Idade Média, esse período que nos foi negado só porque os europeus não nos reconheciam como um território digno a ser expropriado. Ora, e as dezenas, talvez centenas de civilizações que cá viviam não tinham os benefícios da fome nos campos para alimentar a elite, das doenças contagiosas, a Inquisição, as guerras econômicas disfarçadas de religiosas, a censura ao Conhecimento, ao direito de um banho só por ano. 

Sim, eu sei que esse período não foi só trevas, mas essa parte positiva, como veremos, não faz parte do atual plano de negócios. Afinal, é preciso focar, nada que possa dar munição ao outro lado. Trevas é trevas, o resto é contextualização esquerdista enviesada da esquerda comunista. Mas vamos aos fatos, a partir do livro de História do meu filho, embora desconfiado que escrito e ministrado por um professor vermelho, todos os são.

Então, veja bem que as três palavras que mais caracterizaram a Idade Média, fome, peste e guerra, já estão bem contempladas só no primeiro parágrafo. Não vou estender a tortura (ops, não é que a admiração dessa prática medieval também está voltando à moda?). Vamos elencar outros sinais do combo. 

Sou informado que a Idade Média surge depois das invasões bárbaras, para consertar a bagunça. Esse pessoal estava mesmo fazendo uma balbúrdia pagã! Melhor então voltarmos à fé, não mais como uma maneira de encontrarmos consolo ou uma filosofia de vida, mas como instrumento de controle social e submissão. Cabe aos novos cristãos/fiéis pagarem seus dízimos e todas as outras indulgências (em torno de quase metade do que se ganha, por exemplo), ficarem em silêncio contemplativo e obedeceram ao rei e ao papa (aliás, que significa 'papai', vindo do grego). E admirem de seus filhos, nobres reais e eclesiásticos, como exemplos a serem seguidos. Caso não haja concordância, está liberado o uso de armas para ajudar na conversão.

Se os séculos anteriores apontaram mostras do avanço em tecnologias das mais diversas, a Idade Média decreta que a ciência não pode suplantar o divino (no caso, os seus representantes não outorgados, diga-se). Desprezo ao racional, a trajetória científica! Botar fogo nesse pessoal que diz que a Terra é redonda e que não somos o centro do universo! Se não tiver uma fogueira por aí, serve a das vaidades das redes sociais, tá ok? E que mané indústria, o quê? Idade Média que se preze é agrícola! Vamos chamar o síndico, tira essa floresta daí! E sabe aquele avanço ecológico conseguido em tempos anteriores? Dane-se! As terras em repouso já descansaram demais e, bem, esse esgotamento é invenção do povo do oriente, que querem que a gente produza pouco para eles venderem mais. O importante é bater recorde atrás de recorde, mesmo que milhões de pessoas passem fome. Faz parte da vida! É preciso levar a comida para quem a valoriza (em todos os sentidos). As pessoas, se quiserem, que trabalhem para o seu próprio sustento - deus lhe deu braços para isso, mas nunca esquecendo o quinhão obrigatório para o seu senhor, seu protetor acima da massa e, justamente, aquele deus acima de todos. Essa conversa de ascensão social é bobagem naquele e neste período, fruto de mentes instigadas pelo demônio comunista.

Um dos maiores símbolos daquela ocasião, Carlos Magno, a se ver em perigo, que seu poder pudesse lhe ser tirado, usou uma das mais elaboradas estratégias da Idade Média: distribuiu terras as senhores feudais, desde que eles lhe desse promessas de fidelidade e o ajudasse nas muitas guerras que enfrentaria. Como isso, Carlos Magno acreditou que poderia controlar todo o centrão da Europa. O plano até deu certo por um período, mas os senhores feudais sempre se mostraram muito mais espertos que os reis e, bem, na ausência do patriarca, veja bem, os seus filhos brigaram entre si e não conseguiram manter a oligarquia. Será?

Releio o parágrafo acima e vejo que é difícil ser sutil, com tamanha proximidade de fatos. Pois é, fruto da eficiência do plano 'Idade Média Hoje!'. Veja, fico até tímido em escrever sobre as Cruzadas! Aqueles movimentos moralistas que nada mais eram do que estratégias de poder e de como arrecadar mais recursos para as autarquias. O que a gente mais tem hoje são cruzadas, tão insanas, mortais e opressoras como aquelas. Nem tem para fazer analogia que preste! 

Ah, você me dirá, mas universidades surgiram naquela época, olha que beleza! E tem mais, houve uma importante parceria entre os ricos e a produção artística e intelectual, que podemos muito bem acompanhar nos museus pelo mundo, e nas grandes bibliotecas. Que, por sinal, nessa nova Idade Média, continua como dantes: restrita somente à elite. Se chegamos a respirar algum ar de que o Conhecimento poderia ser para todos, ali na meiúca do Séc. XX e início do Séc. XXI, pode parar com essa frescura! Produção artística é coisa de comunista - cortem-lhe as verbas, vamos taxar livros - e educação é um desserviço para esse importante projeto de resgate medieval. Não a toa, só em Minas Gerais, o governo busca 66 mil alunos que sumiram na pandemia. E não é culpa só da Covid-19: já em 2019, o país já havia perdido 1,3 milhão de alunos do ensino básico em quatro anos.

Ufa! Descarreguei! Catarse! Agora sobrou espaço, desanuviou o tempo, dá para pensar o que fazer. Isso, o que fazer perante esse cenário de De Volta para o Passado? Bem, um sujeito comum geralmente é levado a pensar que 'não posso fazer muita coisa mesmo', sem se dar conta que, pasme, é bem um estilo medieval de pensar. O Humanismo, que vai vir depois, dará um pouco mais de poder ao indivíduo, na medida que passa-lhe o bastão de seu próprio destino, ao invés de sobrecarregar o Divino, que tem mais o que fazer do que preocupar em turbinar o currículo de alguém. Portanto, essa ideia de que não há nada o que fazer é bem do estilo, 'deixa que outro o faça por mim, de preferência aquele a quem entreguei o meu próprio destino'.

Assim, o primeiro passo é, literalmente, modernizarmos nossa maneira de pensar. Nem vou entrar nas legítimas e salutares instâncias democráticas, como participação em eleições - incluso do condomínio-, em associações, entidades de classe, coletivos e observatórios sociais. Vai depender muito da energia de cada um, e sua administração é muito pessoal. Mas o nosso entorno tem sinais claros de que a loucura medieval está bem próxima e é bem possível alguma intervenção. E qualquer intervenção racional em um mundo caótico, acredite, já é um importante e libertador caminhar.

Doe, doe, doe! Sim, entendo que no Brasil temos muito o desejo, mas poucas as condições. Principalmente, as psicológicas. Simplesmente não temos uma relação de confiança de quem e como vão utilizar os nossos já parcos recursos. Estragamos, ainda no Séc. XX, a boa ideia das Organizações sem fins lucrativos, as ONGs, que auxiliaria os estados a dar mais capilaridade ao atendimento social. Aqui virou quase sinônimo de safadeza, uma vez que a quadrilha enraizada nos porões político-partidários se lambuzou na sigla. Para a nossa sorte - e é sorte mesmo - a turma do bem continuou atuando e, mesmo que tenha se recolhido, inclusive em prejuízo a sim próprio, deu suporte à muitos projetos sociais e uma banana para os rótulos que alguns insistiam em carimbá-lo.

E essas entidades estão por aí, e, ainda bem, tiveram mais luz durante a pandemia, mostrando que continuam fazendo justamente o que se propuseram sempre: unir as necessidades da população que o estado não consegue atender com a vontade daqueles de doar. Agora, não tem mais desculpas. Se puder doar R$ 10 ou R$ 500, a importância é a mesma. É só prestar atenção das chamadas dos meios de comunicação de massa. E nem precisa doar para a emissora, medo de achar que eles vão descontar no imposto de renda deles: anote o nome da entidade, busque na internet, analise sua organização e simplesmente deposite na conta deles. Hoje dá perfeitamente para saber quais são as organizações sérias, só precisa de um pouco de esforço e discernimento.

Não precisa ser grana. Se puder sair uma tarde ou noite para distribuir cestas, ou levar uma garrafa de água e uma marmita a um morador de rua, já deu. Mas também tem mais jeitos. Não há bairro onde não há uma família que não esteja passando por dificuldades com a pandemia. São tantas as intercorrências possíveis.... alguém do núcleo familiar ter morrido ou ter ficado acamado ou com algumas das inúmeras sequelas, perdeu o emprego ou diminui a renda complementar, ou já estava fora do mercado e a pandemia tirou qualquer possibilidade de retorno, tem problemas de saúde anteriores e ficou desassistido por conta da demanda no sistema de saúde... Mas só dê a bendita cesta-básica se é disso que eles precisam. Porque não dá para trocar fubá ou biscoito recheado por uma conta de luz, de água. Aproveite para conversar e escutar, essa também é uma necessidade básica, e está a um telefonema. Tal precisem mais de um remédio, um médico amigo ou mesmo uma carona para levar no posto de saúde. Lembre-se do tripé que caracteriza a Idade Média e tente resolver um, dois ou os três, fome, doença e segurança (oferecida pelas contas cotidianas pagas).

E pare de esperar gratidão, ou uma resposta que ache mais adequada. Muitas das vezes, quem precisa, fica embaraçado de se manifestar, desde pedir ajuda até mesmo em agradecer posteriormente. Mas não é para agradá-los que se deve fazer, mas para fazermos a nossa parte, simples assim.

Por fim, mas não por último, estimule alguém, uma pessoa só que seja, a continuar estudando. Dê bons exemplos, ajude-o a procurar os inúmeros cursos livres e gratuitos, se a questão for financeira. E, mesmo nesses casos, há hoje inúmeras ofertas de cursos bons e baratos, dos que auxiliam a terminar o ensino básico, à educação superior. A ideia que pobre não tem que estudar faz parte da ideia medieval de que pobre é inferior e deve permanecer nessa posição. Afinal, alguém tem que fazer a colheita. Pegue alguém para pegar no pé (seu filho não vale, está no pacote da sua obrigação), acompanhe, se interesse, parabenize por qualquer avanço, ofereça o colo para os tropeços. E não desista nunca. Minha experiência é que os jovens sabem da importância da educação, mas lhe faltam incentivos, racionais e afetivos.

Por último: preste muita atenção em quem vota! Façamos isso, e façamos qualquer coisa para lembrarmos que estamos no Séc. XXI, que tem dado todas as dicas que essa opção pelo individualismo não é nossa vocação, e é o convite para o desastre da espécie. Pois do jeito que vai, em breve também iremos reeditar também a Idade Moderna, antes da Revolução Francesa, aquela que veio com esse mimimi chamado Democracia!

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