Como os comunicadores não enlouqueceram na pandemia?

Os professores de comunicação foram os mais atingidos. Imagem de Gerd Altmann por Pixabay

 Na realidade, o nome real da pesquisa é Como trabalham os comunicadores em tempos de pandemia da Covid-19, realizada pelo Centro de Pesquisa Comunicação & Trabalho da ECA/USP. Mas, dando uma olhada nos resultados, para mim o maior mistério está na pergunta do título deste post. Ou talvez estejamos todos já malucos, mas a insanidade não nos permite o reconhecimento. Porque foi uma loucura o que se transformou a vida dos profissionais de comunicação que, lembro, não estão naquele popular rol de profissões legitimamente consideradas heroicas durante a pandemia (profissionais da saúde, neoeducadores virtuais, bombeiros, garis), e muitas vezes muito antes pelo contrário! É impressionante como é uma profissão ao mesmo tempo invisível, ao mesmo tempo sustentada pela visibilidade, alvo de desconfiança e confiança em proporções semelhantes. Isso porque, se sabemos algo crível sobre a Covid-19, é que tem um de nós dando notícia. No entanto, os profissionais da comunicação são tão (ir)relevantes que a todo o momento alguns deles relatam que uma categoria exige estar na prioridade da vacinação (mesmo a mais descabida possível), mas em nenhum momento defendem a sua própria: ainda que esteja falando à frente de um hospital lotado, um necrotério cheio de corpos, uma rua movimentada ou um evento com pessoas aglomeradas sem máscara. 

Mas sem coitadismos. Estão na batalha como tantos outros, e bola pra frente! O que não exclui a necessidade de estudar como também está o trabalho dessa rapaziada e, quem sabe assim, dá um pouco de sanidade à categoria que, talvez, ao ver as mazelas que está sofrendo, possa dar um passo atrás, analisar sua situação e buscar algum alento ou estratégia para, enfim, não pirar. Imagino que foi essa a intenção do grupo de pesquisadores coordenado pela Profa. Roseli Figaro. A pesquisa caminha para a sua atualização, já que o levantamento foi realizado entre 5 e 30 de abril, com cerca de 550 respondentes. Ou seja, há um ano e, vamos combinar: que ano foi esse!

O relato é bem completo, e destaco aqui apenas o que me chamou mais a atenção. Estou certo de que cada um achará outras facetas com que vão se identificar - sendo comunicador ou não, pois as novas práticas de trabalho estão para todos os lados profissionais. Em resumo, de repórteres de rua a professores universitários, o home office foi um desconforto geral, transitando da mudança na dinâmica profissional + doméstica, até a ideia de que viramos 'sócios' das empresas que nos empregam, bancando toda a estrutura para trabalharmos (59% dos declarantes). E, como bons novos 'sócios', não capitalistas, mas de trabalho, aumentou consideravelmente as horas trabalhadas (ah, que saudade de um relógio de ponto!). 

Como se isso já não bastasse, aprendemos que horas trabalhadas têm uma dimensão que sentíamos, mas não nominávamos: intensidade! Sabe aquele funcionário que a gente depende dele e o sujeito parece que está em outra velocidade? Eu correndo para o rotativo não vencer, e a pessoal com todo o tempo do mundo? Então, estamos em intensidade laboral diferente. Pois é, a nossa intensidade, que já não era em uma RPM das mais saudáveis, pulou de fase.

Na próxima etapa do jogo, como todo videogame, só não ficamos mais frenéticos, como ampliou-se as armadilhas e os inimigos ocultos - mas que sabemos que eles ali estão, nos espreitando. Mas agora eles têm nome e endereço: desemprego e/ou incertezas sobre novas condições de trabalho. Com um agravante: a barrinha de energia - nossos ganhos - agora tem pauzinhos a menos. Outra coisa: ao contrário de alguns bons jogos, geralmente não tem uma artilharia infinita te dando segurança. A pandemia só intensificou a falta de direitos trabalhistas, a pejotização das profissões, o empreendedorismo neoliberal, aquele em que você usa por não ter opção, não porque inveja o Steve Jobs. Daí, dá-lhe discursos do tipo coaching, onde tudo é oportunidade, tudo é novo mundo, tudo é tecnologia a serviço do bem - papo diversionista e contraditório - e que, se algo der errado, bem, foi sua culpa, que não teve ânimo, entusiasmo e intensidade suficiente. Game over. Caramba, é muito estresse. Deve ser por isso que não sou um gamer!

A pesquisa aponta também um sofrimento ético. Todo profissional ainda não independente financeiramente tem que virar a cara e/ou evitar o vômito em ocasiões em que os boletos falam mais alto. Os bons profissionais de comunicação enfrentam ambos. Tanto quando notam que os ambientes onde frequentam, ou as pautas que cobrem, ou as temáticas que ensinam, fedem a morte e insanidade operacional - e que o seu próprio ambiente doméstico pode ser contaminado física e psicologicamente; tanto quando estabelecem novas formas de trabalhar - mesmo que com mais perdas físicas e psicológicas - para cumprir seu papel social, importantíssimo em uma pandemia, oferecendo conhecimento legítimo e curadorias de material informativo. E sem poder contar com o happy hour para desopilar o fígado - físico e psíquico.

 

Minha esposa me disse, no início da pandemia (época da realização da pesquisa) que eu estava trabalhando demais, muito mais do que antes. Engraçado, não era o que sentia. Estava em casa, de bermuda... Mas, fiz um comparativo quantitativo e, de fato, ela estava com razão, com um número que também me assustou. A pesquisa indicou isso, que talvez a gente preste muita atenção no trabalho feito, mas não no ritmo de trabalho, o tal da intensidade. 70% declararam que o ritmo estava um pouco ou muito mais pesado do que antes, contra 20% que estava um pouco e muito mais tranquilo. A maioria indicou que mudou sua carga horária (55%), 45% teve aumento, o restante manteve ou diminuiu. Em relação ao aumento da carga-horária, 20% ampliou entre meia hora e 2h30'; três a seis horas, 18%; e de sete a 11 horas, 3,6%. 

Na minha área, então, a de ensino e pesquisa, o trem foi ainda pior. Fomos o segmento com o maior índice de percepção de aumento de ritmo de trabalho. Somos 75% que sentiram que o ritmo está um pouco ou muito pior do que antes contra 18% que melhorou, 5% a mais que a média. Vejam nossos concorrentes no mesmo quesito os profissionais que trabalhavam em:

    * Mídias Tradicionais - 69% 

    * Mídias Alternativas - 73%

    * Assessorias - 72%

    * Agências - 58%

Relembro que a pesquisa foi realizada no início da pandemia, onde ainda iniciávamos um processo de transição, basicamente fazendo aulas online sem muita sofisticação, apenas tentando cumprir horas e não deixar os alunos evadirem, ainda mais que estávamos ainda na primeira metade do semestre. A pesquisa já apontava os indícios das atividades extraclasse, como os treinamentos para o uso das plataformas. Mas quem estava por dentro, sabe que, após esse período, a carga de trabalho ainda aumentou mais, com mais cursos para adquirirmos 'novas habilidades concordantes com os novos tempos', ou seja, pressão para o uso de ferramentas digitais com o propósito de mantermos os alunos 'aquecidos' e com vontade de fazer a rematrícula no próximo semestre. De toda forma, a categoria, m geral, respondeu entusiasmada pela educação e pelos desafios (aliás, quase um pleonasmo). Muitos de nós se 'descobriu' com o e-professor, "que bom, aqueles aperfeiçoamentos que a gente vivia adiando", finalmente estávamos fazendo, mesmo que a toque de caixa. Exaustos, mas um tanto satisfeitos com nosso desempenho, pois, em pleno mundo acabando, fechávamos o semestre com nem tudo perdido. 

Mesmo porque, há muitos séculos, embutiram em nossa cultura de educador a ideia de professor como uma predestinação ao sacrifício, uma espécie de vocação que somente se satisfaz com sofrimento. Deve ser por isso que sempre ganhamos pouco, financeira e respeitosamente. Daí, imbuídos do sacrifício de grande parte da população perante a pandemia, mesmo com o aumento do ritmo e volume de trabalho, estávamos fazendo a nossa parte. Obviamente, também era o momento de esticar uma corda um pouco a mais em alguns lugares onde se é mais frágil, no caso, os trabalhadores. Porque os mesmos 75% apareceram como índice dos que perceberam que aumentou um pouco ou muito o ritmo de trabalho desde que tivesse carteira assinada, isso independente se empresa pública ou privada. O índice só ficou abaixo dos 83% da ONGs, o que, em uma pandemia onde o estado vem falhando, justifica-se. Claro que o semestre seguinte trouxe uma nova realidade, mas não vou me arriscar. Vamos aguardar os dados da nova etapa, que está sendo realizada agora.

Mas, não desistimos. Veja que quando questionados se vale a pena, as respostas, quando sistematizadas sobre sua redundância nos textos responsivos, além de um sonorovisual 'sim', ainda elenca palavras que são pilares da nossa profissão escolhida: 'momento', 'público', 'sociedade', 'população', 'crise', 'ações', 'social', 'redes' entre outras.

 

Talvez esteja aí a resposta que o título levanta. Ainda!

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