70 Anos de TV Brasileira: Outras Telas - Episódio #1 TVs Hippies 1

As TVs que a história da TV não mostra* Imagem de Sbringser por Pixabay

Merecido comemorar! Os 70 anos de TV brasileira mostra uma senhora de respeito, aqui e no mundo, e que, mesmo com todos os seus defeitos, no balanço prestou melhores serviços do que atrapalhou. Mas estou meio de saco cheio com as homenagens, em videos que me parecem sempre os mesmos, apenas alternando os destaques, conforme a emissora que o produziu. Mas há um aspecto que faz também da TV brasileira única no mundo: sua enorme variedade de gênero, não de programas, mas de tipos de TVs. Qual lugar no mundo temos TVs piratas feita pela comunidade, TV produzida por índios e levadas rio acima e abaixo, TV no meio da floresta ou em cima de um muro, TV sindical (de trabalhador e patrão), TV exibida em uma Kombi? Acho que só no Brasil temos TVs educativas que são comerciais e comerciais que são educativas! TV só para professores do ensino básico e TV feita pelos alunos do ensino básico. E nem citei as mais ou menos conhecidas, como as TVs Câmaras e Universitárias. É tanta variedade que, já aviso, não vou dar conta de contar tudo de uma vez. Mas, aos 70 anos da TV brasileira, a tentativa é que não esqueçamos uma das suas maiores e melhores características (por mais que as majoritárias comerciais e estatais de esforcem para tal): sua diversidade de tipos, sua criatividade de se virar com poucos recursos e muita vontade, e capacidade de fazer comunicação social, no mais amplo e correto significado da expressão.

Não tenho dúvidas que nossa TV tem uma diversidade compatível com a diversidade étnica, cultural e social do país: temos dezenas de tipos de televisão que não se encaixam nas retrospectivas que fazem crer que só temos dois tipos de emissoras: as comercias e as suas marginais, as estatais, do tipo TV Cultura, TV Brasil, Rede Minas. Pois o Brasil tem uma outra história de TVs, das mais variadas e curiosas: TVs comunitárias, literalmente, de beira de linha e nas fronteiras da legalidade (ou cruzando na maior cara de pau), TVs universitárias, legislativas, instrucionais, sindicais, educativas locais que anunciam o açougue.... Certamente, estou longe de conhecer o mundo, mas do pouco que conheço não conheço lugar que tenha um zoológico de concepções jurídicas e de programação tão variadas quanto no Brasil. Essa é uma das características da indústria e cultura televisiva brasileira que, convenientemente, é esquecida por quem faz as atuais retrospectivas de sete décadas. 

Sem qualquer intenção de esgotar a temática, aqui se objetiva é elencar quais são essas experiências, depois facilmente encontradas na rede, nas bibliotecas e nos depositórios de teses e dissertações. Aliás, o objetivo é bem esse mesmo: despertar a curiosidade a partir do despertar do tipo “puxa, nem sabia disso, vou correr atrás para saber mais”. A tarefa não é fácil e para não cansar a minha refinada (e por isso, rara) audiência, será feita em partes. O que reforça o que já escrevi: esse lado alternativo da TV brasileira é tão rico que é preciso fôlego e espaço para conhecer apenas um pouco mais.

Quando comecei a pensar sobre isso (volto a dizer, quando me cansei de ver as mesmas coisas nos programas que comemoravam os 70 anos da TV no Brasil e pensei "arf, ninguém fala das criativas telas televisivas alternativas que inventamos!"), me lembrei rapidamente da minha experiência nos anos 1990, a TV quarentona e... literalmente com sintomas de crise de meia idade!! Imagina, resolveu ter umas fugidas alternativas e completamente anárquicas! E, também por isso, super para cima e com grande pegada social. Sim, embora um pouco tardia, tivemos nosso momento de TV Hippie!

Eram anos após a promulgação da Constituição de 1988 e tudo parecia possível para quem militava uma verdadeira comunicação pública. Como vivíamos novos tempos, livres da opressão da censura da ditadura, e inebriados e ansiosos por liberdade de expressão, uma avalanche de rádios que funcionavam ilegalmente avança por todos os cantos do Brasil, já que era muito barato construir um transmissor. O governo não tinha nem condições de fiscalização, e nem lá muita vontade, já que era inócua (fechava uma, dois dias depois estava no ar de novo). Esse contexto, criou-se um movimento de rádios comunitárias politicamente forte, que fez uma legislação caminhar para oficializar as existentes e criar outras tantas.  Assim, nesse clima de 'democratização' da comunicação eletrônica, por que não uma TV comunitária? 

Lembremos que o Brasil já tinha essa pegada, desde os anos 1960, do 'faça-você-mesmo-o-seu-rádio-ilegal', com a Faixa do Cidadão, ou PX, aquele divertido sistema de comunicações individual, com equipamentos amadores, que tinha como objetivo principal ajudar em caso de emergências, mas que serviu demais para amenizar a solidão de caminhoneiros e radioamadores nas madrugadas brasileiras. As rádios comunitárias ampliam o um-a-um dos PXs para um-para-muitos: muita informação de interesse social, apenas para aquela localidade, incluindo aí o comercial, o anúncio do açougue que citei anteriormente. Para mim, algo que verdadeiramente dava sentido a expressão comunicação social. Ora, por que não também TVs comunitárias na mesma linha? 

A questão mais complexa era mesmo a dos custos, principalmente do transmissor, mas também de câmeras, estúdio, ilhas de edição, o que elevava a questão financeira para outro patamar. Mas já era tempo das câmeras camcorder, do VHS, de gambiaras mil para editar com dois videocassetes caseiros. Para finalizar, como dito, construir transmissores era uma espécie de desafio para os técnicos, amadores ou profissionais em suas horas de folga. Então, é difícil, mas mão na massa? Assim, ali entre meados dos anos 1980 e 1990 foi um tal de emissoras piratas com nomes lindos como TV Livre (SP), TV Vento Levou, TV Lama (RJ) e que foram sumariamente reprimidas, de tal forma que algumas delas nem sequer há registro se chegaram a entrar no ar ou ficaram só na lenda. O susto foi grande - afinal, as rádios comunitárias, embora também tivessem repressão, não foram abatidas com tanta veemência e velocidade. A desigualdade da pancadaria certamente é logica: a diferença política entre os empresários das rádios comerciais e das TVs comerciais brasileiras. Não saberia fazer uma correlação em outros estados que não o meu, mas é óbvio que, aqui em Minas, brigar, mesmo com a poderosa Rádio Itatiaia, era como brincar de beliscão, em oposição ao UFC que era encarar as grandes redes de TV. Definitivamente, essa é uma história que a Globo não quis nem deixar se mostrar!

Falando em Minas, aí, finalmente, persistente leitor, vou lembrar do que me lembrou para iniciar essa série de artigos: as TV Sala de Espera e a TV Beira Linha, em Belo Horizonte, meados de 1990. A primeira, realizada para levar programas sobre saúde e de interesse social para as salas de espera do sistema público de saúde, produzida por estudantes, professores, videastas comunitários; a segunda, produzida pela comunidade com o mesmo nome, como imagina-se, vivendo precariamente na beira de uma linha férrea. Tudo via ar mesmo, VHF, no mesmo espectro das TVs tradicionais. Mas com transmissores com baixa potência, completamente ilegais (mas muito divertido de fazer!). A vontade, e a ingenuidade, eram tão grandes que a turma fazia grande alarde, inclusive na grande imprensa, e de como o trabalho comunitário e a aplicação da verdadeira comunicação social mudaria a vida das pessoas mais carentes. Não à toa, tais aventuras, em BH e pelo o Brasil, não chegavam a durar mais do que dias, com a Polícia Federal batendo na porta e nem podendo correr como a turma das rádios (o transmissor de TV não cabia debaixo do braço!). Mas, vamos combinar, belas histórias dentro dos 70 anos da TV brasileira, não? Mereciam ser melhor contadas, mas hoje estão restritas a trabalhos acadêmicos aqui e ali.

À propósito, Cicilia Peruzzo e Rafaela Lima (militante, colega e que me ensinou tudo do pouco que sei sobre TVs verdadeiramente comunitárias) são algumas das pesquisadoras que me lembro. Dentro, infelizmente, um seleto grupo de investigadores que se dedicaram a registrar mais essa faceta esquecida da história da TV brasileira. Mas não para a academia brasileira, viu? Interessados vão achar muita coisa boa nos bancos de teses e dissertações, nas plataformas de busca acadêmica e revistas indexadas. E muitas testemunhas da história doidinhas para delatar...

No próximo episódio....

Nessa mesma época, se a gente não podia transmitir via ar, que tal via rio? Ou via Kombi? Talvez via muro? Uma série de outras ‘TVs’ surgiram com propósitos semelhantes as rádios e TVs comunitárias em VHF: servirem, ao mesmo tempo, de olhos e voz, assim como meio de se ´colocar em comum´ entre seus próprios pares, usando a expressão que deu origem a palavra comunicar. Foram muitas iniciativas de TVs assim, o que já elevava o conceito de televisão a muito mais do que o seu aparelho reprodutor nos lares brasileiros (mania da gente confundir televisor com televisão) e tinha muito mais a ver com a ideia de uma linguagem, uma filosofia de sequenciamento, uma estética de síntese visual e narrativa, uma proposta de janela do mundo (em contraposição ao livro de histórias do cinema). Veja que já era uma maneira de entender o que é televisão e que só veio a ser debatido novamente quando das produções da Netflix, da oferta de programação via aplicativos, quando nos perguntamos se tudo isso é ou não é televisão. Tolinhos! Mal o Brasil sabe que tudo isso já era fava contada para os índios de Santarém/PA, moradores da Baixada Fluminense/ RJ e da cidade histórica de Sabará/MG. 

Próximo segunda, dia 28, nesse mesmo blogcanal!

*Última nota: a dificuldade é tamanha em registrar essa história que você acredita que, mesmo após horas no Google (inclusive o acadêmico), fui incapaz de achar uma foto sequer da TV Sala de Espera ou TV Beira Linha para ilustrar a coluna?

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