70 Anos de TV Brasileira: Outras Telas - Episódio #2 TVs Hippies 2

Rede Mocoronga em ação: comunidades ribeirinhas fazendo uma TV brasileira. Imagem: Divulgação

Está cansado de ver e ouvir falar dos 70 anos da TV brasileira? Não se cansa não, é o maior e mais importante veículo de comunicação social do país. Mas talvez você deva olhar para outra tela, que não seja só Assis Chateaubriand de um lado, Pantanal do outro! Nossa televisão é fantástica na sua diversidade enquanto tipos de TV, e isso sim, a Globo não mostra (nem o SBT, nem a Band e, pasmem, nem a Cultura). Essa série não quer ser referencial teórico, mas brincar com as memórias e jogar para a superfície todo um universo que atice sua curiosidade - e, quem sabe, seu desejo de pesquisa - com uma variedade de experiências televisivas que só o Brasil teve, e que fazem parte importante da trajetória do veículo.

A setentenária TV brasileira está recebendo justas homenagens. Por mais que tome pancada dos intelectuais, todo mundo gosta. Desconfio que até os intelectuais! Mas, amantes mais deep webs sabem que o objeto do amor geralmente não corresponde literalmente a sua persona, a sua faceta mais visível. Ao contrário, há um lado desconhecido que a complementa, que encontra nesse lugar o seu espaço para exercitar o que mais tem de sedutor, aspectos reais e embriagantes e, como tal, menos aceito na sala de estar. Semana passada, iniciamos com o que havia de mais radical, as TVs piratas em VHF, as fora-da-lei de vida curta, mas superlegais (que pena que não no aspecto jurídico). A pegada hoje está na mesma linha, agora não mais via VHF, mas via rio, Kombi, praça da cidade..., e sem se preocupar com a polícia.

Há várias TVs 'hippies' que aconteceram ali nos meados dos anos 1980 e 1990, quando vivíamos uma abertura democrática, ainda mais de sentimento: o medo, finalmente, havia passado e a garotada agora estava chutando o balde, e a comunicação eletrônica, talvez o setor mais conservadoramente regulado do país (até hoje!!) parecia muito com a fronteira a ser cruzada. Assim, por que restringir a televisão ao seu aparelho televisor?

Ops, notou como essa quebra de paradigma acontece antes da internet? E o pessoal hoje querendo discutir o pioneirismo da TV nas novas plataformas digitais... Antes dessa turma nascer, uma galera de jovens viu na tecnologia que se tornava acessível para amadores a oportunidade de produzir videos. Mas não videos 'padrão global', ou para concorrer em festivais, muito menos para ser campões de audiência. Pura contracultura e trabalho coletivo, mas sem muito só paz e amor. A ideia era confrontar os padrões audiovisuais de produção, mas com uma pegada social forte, de diminuir as desigualdades no verdadeiro significado de Comunicação Social.

Não há aqui a pretensão de uma revisão histórica. Está mais para uma memória emotiva. Entre os grupos de idealistas com uma câmera na mão, dois videocassetes caseiros na mesa, e muita vontade de dar voz aos excluídos, o que tenho de lembrança mais forte é da turma da Associação Brasileira de Video Popular, movimento que pega justamente essas metades dos anos 1980 e 1990. É uma rapaziada que vai até influenciar a televisão tradicional, se não dando vozes a quem precisa, pelo menos na estética e na vontade de quebrar os padrões até então estabelecidos. Para os mais velhos, a TV Pirata, na Rede Globo, com os artistas de vanguarda como Astrubal Toca o Trombone, é o exemplo que o jornalista, pesquisador e professor de TV, Gabriel Priolli, me recordou recentemente.

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As TVs de Rua, as feitas com e pela comunidade, estiveram pelas praças e escolas. Crédito: Divulgação CECIP

Essa turma quis fazer televisão. E dai-lhe TV Beira Linha e TV Sala de Espera, que tratei anteriormente. Mas, como vimos, essas TVs tinham vida de borboletas, exuberantes, mas de existência curta. E se a questão da transmissão via ar era um problema, tratemos nós mesmos de levar os programas a onde o povo está. E, se a antena é a questão, onde podemos colocar a tela e o nosso 'transmissor'? Essas ‘TVs’ surgiram com propósitos semelhantes as rádios e TVs comunitárias em VHF: servirem, ao mesmo tempo, de olhos e voz como de meio de se ´colocar em comum´ entre seus próprios pares, usando a expressão que deu origem a palavra comunicar. Quem fazia a programação, propunha os programas, gravava e editava era uma mistura de representantes de uma determinada comunidade com jovens estudantes e professores de audiovisual. Enquanto os segundos ensinam questões técnicas e forneciam os equipamentos (amadores, em grande maioria), os primeiros ditavam pautas e descobriam a maravilhosa forma de se expressar via audiovisual, de um para muitos (e seus).

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Note a 'TV Kombi' prontinha para se exibir. Crédito: Divulgação CECIP

Faltaria apenas 'colocar no ar'. Bem, impossibilitados por via legal, pelas antenas, restava se apropriarem dos próprios aparelhos de TV ou de telas ainda maiores, combinar com a mesma comunidade, e recriarem os televizinhos, fenômeno do início da televisão comercial no Brasil, onde os poucos afortunados que tinham televisores em casa recebiam seu vizinhos para assistir em coletividade. Não havia lugar melhor para ir e não foi à toa que ficaram sendo conhecidas como as 'TVs de Rua'.

De novo, pela minha memória, o primeiro dos exemplos está a TV Maxambomba, na Baixada Fluminense, realizada pelo CECIP – Centro de Criação de Imagem Popular, "uma organização da sociedade civil, sem fins lucrativos e não-partidária, que desde 1986 se dedica ao fortalecimento da cidadania por meio da educação e da comunicação" (e que vai muito bem, obrigado!). Após todo o processo de criação e trabalho técnico coletivo, a programação era exibida em cima de uma Kombi, numa praça da cidade ou em uma escola, onde o maior número possível de pessoas podiam ver e se ver.


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Jovens ribeirinhos do Pará fazendo sua TV Mocoronga. Crédito: Divulgação Rede Mocoronga

Mas, para mim, a mais legal era a TV Mocoronga, que até reverteu o título de 'TV de Rua' para 'TV de Rio': é que o trupe pegava um barquinho, em Santarém, no Pará, parava em cada povoado ribeirinho, faziam seus programas coletivos sobre e com cada comunidade e tribo, exibiam o que tinha sido feito nos contatos anteriores e seguia rio acima. Pode imaginar a importância para as comunidades indígenas se ver e se mostrar por todo um território? Certamente, o sentido de 'rede' ganhou um novo significado.

Foram muitas iniciativas de TVs assim (incluindo a do episódio anterior), o que já elevava o conceito de televisão a muito mais do que o seu aparelho reprodutor nos lares brasileiros (mania da gente confundir televisor com televisão) e tinha muito mais a ver com a ideia de uma linguagem, uma filosofia de sequenciamento, uma estética de síntese visual e narrativa, uma proposta de janela do mundo (em contraposição a de um livro de histórias, que se baseia a indústria do cinema). Essa maneira de entender o que é televisão só veio surgir novamente quando das produções da NetFlix, dos vídeos on demand, da oferta de programação via aplicativos, na rica discussão do que é ou não é televisão. Tolinhos, mal o Brasil sabe que tudo isso já era televisão na beira linha de Belo Horizonte, em uma praça fluminense e nas aldeias do Pará.

Conheça a menor TV do mundo - RecordTV - R7 Roberto Justus Mais
Chiquinho e sua TV Muro: "a televisão que menos cresce". Imagem: R7

Ou no muro de uma humilde casa no interior de Minas. Dois frutos desse movimento beberam na fonte, embora não mantivessem todos os seus aspectos. Um exemplo famoso dessas TVs alternativas do bem é e continua sendo a TV Muro, iniciativa de Chiquinho dos Santos, um servente morador de Sabará/MG, que produz, desde 1997, seus programas baseados no que acontece ao seu redor, na "menor rede de TV do mundo". E, claro, o lugar de exibição é no muro da sua casa. Foi a primeira 'TV independente' de que tenho conhecimento que fez seu próprio reality show, o 'Muro Brother Brasil', mas usando os membros de sua própria família (até o cachorro entrou na história). Segundo a reportagem do link anterior. "o Murojac (corruptela do Projac global) já produziu atrações como o jornal esportivo "Muro Espetacular" e a revista gastronômica "A Hora da Janta"". A TV Muro não tinha o aspecto da criação coletiva comunitária, embora Chiquinho chega a tratar de questões da sua vizinhança. O que lhe não tira a coragem, a ousadia e a vontade de fazer TV. Sua experiência, claro, já ultrapassou os limites da rua e já está na internet. Se a TV Muro não faz uma TV com DNA brasileiro, não sei mais quem faz...

2X1: "Jornalismo Participativo" na grade da TV Cultura de Itabira/MG. Imagem: banco próprio

Da minha parte, nas duas emissoras educativas abertas que coordenei, implantei programas inspirados no movimento: o 2X1 na extinta TV Cultura em Itabira/MG e o Comunidade na TOP Cultura, em Ouro Preto/MG. A metodologia era inspirada nos exemplos da ABVP: reunia-se com representantes de um bairro a ser retratado, escolhia-se as temáticas e os tipos de abordagem. As diferenças eram técnicas e apropriadas ao veículo, ambas emissoras locais de sinal aberto: os 'repórteres' continuavam a ser pessoas da própria comunidade, mas as gravações e edição eram realizadas pelos profissionais da emissora; e os programas tinham quadros fixos, divididos em reportagens de interesse social, história oral, apresentações artísticas e até receitas locais. Tinha até uma van onde os moradores podiam falar o que quisessem, inspirado nas videocabines de Sandra Kogut.

Tudo isso, de novo: são achados em trabalhos acadêmicos aqui e ali, e não devemos nos esquecer que fazem parte desses 70 anos de TV no Brasil. Para mais, você encontra farto material acadêmico e muitos documentários por aí. Basta procurar.

No próximo episódio...

Então, nessa toada, que tal falarmos das TVs Comunitárias em sinal aberto? Uai, mas não foi o primeiro episódio? Que nada, o Brasil é muito criativo e o conceito de 'Comunitária' é, digamos, 'elástico'. Pelo menos é o que um grupo de empresários de televisões locais, principalmente em Minas Gerais (mas longe de ser só eles), consideravam da sua TV. Mesmo que tivesse zero de participação social, mas muito de participação político-partidária. Achou pouco? Calma que ainda tem televisões educativas vendendo carne de primeira....

Próximo segunda, dia 5, nesse mesmo blogcanal!

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