Quem aí acha que a tecnologia está nos fazendo trabalhar mais, levanta a mão! (mas cuidado para não deixar cair o smartphone!)

Se estamos trabalhando mais com as novas tecnologias, estamos fazendo uma heresia! Crédito: Pexels por Pixabay
Tecnologia é a invenção da Humanidade para que ela trabalhe menos. Eu sei, parece piada. Hoje. Nesse século. Mas não era assim. Então, taí um bom motivo para pensarmos sobre o que fazemos com as novas tecnologias, principalmente as ligadas a Comunicação.

Desde as primeiras pedras lascadas, quando começamos a subir da série D para o topo da série A na cadeia evolucionária e alimentar, o objetivo era diminuir ou substituir nosso esforço para realizar uma determinada tarefa. Cria-se um aparato que fosse uma extensão de nós mesmos, mas ainda melhor, mais eficiente e fizesse o bagulho em menos tempo. Ao invés de rasgar a pele dos animais com as próprias mãos, melhor usar a lâmina de pedra. O resultado é uma proteção ao frio mais rápida, mais limpa, e um tempinho a mais para dormirmos aquecidos. E posso repetir o processo, sem ter que lascar outra pedra. O lado B da história é que também vale para resolver a pendenga com o meu inimigo, onde uma pedra bem mais lascada é mais eficaz que minhas próprias mãos, mas isso é para outra hora.

Bem, daí pra frente, dai-lhe o controle do fogo (imagina ter que ficar esperando cair um raio...), invenção das casas (que mané ficar procurando abrigo todo dia...), da roda (taí o patinete para você economizar na caminhada e gastar o seu salário....), do papiro e da imprensa (criando a primeira educação a distância da história...). E a nave foi, com picos tecnológicos, como as revoluções agrárias e industriais, que fizeram a Humanidade chegar a um nível tal que podemos achar natural e reivindicarmos como direitos inalienáveis dormir 1/3 do dia e trabalhar apenas outro 1/3 (e baixando esse número, como alguns países europeus, já com 35 horas semanais - e sem cair a produtividade).


Faça uma lista do que fez ontem e vai descobrir que a tecnologia economizou um tempo que nossos antepassados se revoltariam por não terem tido a mesma benesse: o liquidificador poupou suas mãos, o chuveiro de uma caminhada ao rio, a geladeira de ir caçar sua janta. Mas, então, qual é o problema?

O problema é que estamos invertendo as coisas. As novas tecnologias de comunicação estão ocupando o tempo que estamos economizando, num verdadeiro ciclo vicioso, um cachorro correndo atrás do seu rabo. Há uma responsabilidade que é nossa, ávidos em nos sentirmos informados e integrados socialmente (e disso não vou tratar hoje). Mas há uma esperteza das empresas que bem estão se aproveitando disso, já que caminhamos alegremente para a armadilha.

Vou contar uma história pessoal: nos anos 1990, fui trabalhar em uma cidade distante 100 quilômetros da sede da empresa. Ganhei um tijolão, que alegremente coloquei na cintura, pois poucas pessoas tinham o luxo de ter um telefone celular. Usei intensamente, e até que a empresa não me exigia muito o uso fora do horário de trabalho. Desconfio que eu é que devia infernizar meus funcionários naquela ocasião, ligando, independente do horário. Afinal, o aparelho estava ali para ser usado em benefício das atividades da empresa. E era chique pra caramba!

Por isso, na ocasião, me surpreendi com um movimento trabalhista de ex-funcionários entrando na Justiça requerendo horas-extras para aqueles que usavam celulares institucionais. Estavam certos: se o telefone era da empresa, e podia ser acionado pelos chefes a qualquer momento, de fato o funcionário estava a disposição 24 horas por dia, num eterno plantão. Devia ser remunerado por isso. (Se você se identificou com a história quase trinta anos depois, saindo telefone, entrando aplicativos de redes sociais, já entendeu o objetivo desta crônica...).

Pela primeira vez, percebi que o chique era também uma maneira de ampliar a exploração trabalhista.

A minha empresa logo se movimentou: trocou meu aparelho, agora bem menor (embora eu continuasse a usar uma pochete externa demonstrando meu status tecnológico), mas 'me deu' o celular (ou seja, colocou no meu nome, portanto, não era oficialmente institucional), aumentou meu salário para comportar o valor da conta da operadora, e elaborou uma série de normas para o uso que, na realidade, dizia apenas algo como "bom, agora que o telefone é seu, a conta é sua, já falei para não usar fora do horário de trabalho, qualquer coisa diferente disso é de sua responsabilidade".

Ah, entendi, e ao que parece, o conjunto dos trabalhadores com pochetes com celular também. Assim, de uma certa forma, passamos alguns anos restabelecendo as prerrogativas do uso de aparatos de comunicação. Minha chefe até me ligava fora do horário, eu, obviamente, atendia, mas caia na conta do "atendi porque quis", "faz parte do cargo", "ah, quê que custa....". O que importa é que, com essas modificações, diminuíram bem os casos judiciários.

Ou seja, tudo ia bem até a chegada das novas tecnologias de comunicação, em especial a banda larga e as redes sociais digitais. Não sei exatamente o que aconteceu, onde foi que perdemos aquilo que nos perturbou quando da chegada dos celulares, mas... abrimos home office em casa e bancamos os custos de energia, água, internet, impressão, papelaria. Trocamos mensagens com nossos chefes, funcionários, alunos, clientes, de noite, fim de semana, madrugada, e tudo parece que está tudo bem!

Eu tenho home office, na boa, não quero abrir mão dele. De fato, prefiro mais trabalhar em casa do que me deslocar todos os dias, e gastar preciosos tempo e dinheiro para isso. Não quero ir para um ambiente onde não posso ficar de bermuda, dar uma paradinha para buscar meu filho na escola ou ver um programa na TV sem alguém me julgando, poder esperar o técnico que vai consertar meu chuveiro hoje e não no fim de semana. Mas, por outro lado, domingo passado, trabalhei o dia inteiro! Claro, foi minha opção, mas em outros tempos, onde computador e internet eram itens fora do orçamento domiciliar, mesmo que eu quisesse, não conseguiria trabalhar.

Durante um tempo, também nos fins de semana e nas noites conversava com meu chefe e colegas, mas transvestia o que era, muitas vezes, discussões de trabalho como se fosse uma espécie de lazer, um bate-papo entre amigos. Bem, não era! Não quer dizer que meu chefe e meus colegas não possam ser meus amigos, mas se quero ter um tempo de lazer com eles, ora, vamos num barzinho ou venham aqui em casa para conversarmos. Aí, até podemos falar de trabalho, mas o ambiente informal caracteriza um espaço de não trabalho. Já o WhatsApp serve tanto para mandar uma piada como uma convocação para reunião, pedindo, inclusive, que os componentes do grupo parem o que estejam fazendo e mandem itens para a pauta. Na minha opinião, sim, o WhatsApp e o seu grupo de trabalho é uma extensão do ambiente institucional.

Da minha parte, estabeleci um limite: a mensagem do meu WhatsApp é "fechado de 19 às 8 horas". A estratégia segue para todas as redes sociais. No início, foi duro: ver aquela quantidade de notificações e o dedinho coçando para ver o que estava rolando. Por outro lado, descobri um tempo enorme para fazer outras coisas ao mesmo tempo que percebi que muito do que culpamos os outros, do chefe que manda mensagem aos parentes que mandam doidices, a maior responsabilidade é minha. Se eu respondo, se eu fico angustiado, se eu me aborreço com as questões familiares, na realidade fui eu que apertei a tela do celular. A partir do momento que não dou retorno, as coisas vão se acomodando: ao perceberem que os dois pauzinhos do WhatsApp não ficaram azuis, meu chefe começa a entender que estou falando sério sobre hora de trabalho. E nada impede de, realmente numa emergência, usar o bom e velho telefone para o qual ele foi criado originalmente: ligar e conversar pessoalmente, um um aparelho mediático sem tantas mediações....

Atenção: isso não é fórmula para ninguém! À princípio, só para mim e minhas angústias. Cada um sabe do seu, e há quem fique muito confortável estar conectado 24 horas e, usando da máxima de que trabalho e prazer podem sim se misturar por esse período, viver intensamente por esses novos aparatos. Também é bastante lógico pensar que, se posso resolver o problema agora, de noite, no fim de semana, para quê esperar o acumulado início do expediente? Portanto, cada um sabe mesmo do seu. Ou seja, as novas tecnologias de comunicação, em si, não são problema. Em mim é que são!

Bem, parece também que, para as empresas, também começam a ser. Um movimento, ainda discreto, mas bem parecido com aquela história do tijolão, mostra que as empresas estão começando a se preocupar com isso, dado que já começaram a ter problemas trabalhistas. Nessa reportagem do Metro/Band, a historinha das empresas se repete: o sujeito aciona a Justiça porque nas férias, nos fins de semana, fora dos horários de trabalho, é um tal de receber mensagem demandando coisas.... E a empresa alega que ele respondia porque queria, não era obrigado! Sei! Ainda bem que o TST (Tribunal Superior do Trabalho) não engoliu e mandou indenizar. Mas, imagino, isso só aconteceu porque o sujeito não deve mais trabalhar na empresa. Portanto, nestes tempos de desemprego, tem muito gente aí sendo explorada. Tomara que estejam fazendo prints...

Mas a delícia da tecnologia é que, com boa vontade, ela mesma pode ser a solução dos seus problemas: novos aplicativos, como o Slack, o próprio WhatsApp Business, e sistemas de controle de uso do Android, podem ajudar a regular novamente as relações de trabalho, para aquelas empresas eticamente responsáveis.

Claro, isso não é uma garantia que irá me impedir de trabalhar domingo e nem de responder ao chefe nas férias, mas já é uma esperança. Porque trabalhar fora do horário sem receber, é de lascar!

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