A virada da Educação a Distância



Desafio: marque a foto que representa a verdadeira educação a distância. Créditos: Michal Jarmoluk e cherylt23, da Pixabay.
Em breve, teremos mais alunos na educação superior no EaD (Educação a Distância) do que no presencial. O que está acontecendo? O que está causando essa reviravolta, de opção desprestigiada para solução privilegiada? Eu tenho lá minhas teorias!

Mas vamos aos números: mesmo nessa crise brava, onde parece só crescer a falta de noção civilizatória, de 2017 a 2018, o EaD cresceu, em novos ingressantes, quase 28% (o presencial recuou 3,7% e nosso pibinho aumentou 1,1%). Em dez anos, foram acachapantes 196% contra 10,6% (o INPC do período foi de 86,68%). Se em 2008, 19,8% eram EaD, fecharam 2018 ocupando quase 40%. Em resumo: se há aumento de alunos no ensino superior (6,8% de 2017 a 2018), deve-se ao Ead.

Há muitos mais números, que podem ser admirados no Censo da Educação Superior, do Ministério da Educação. Para nós, o que importa aqui é pensar sobre o que está acontecendo. Tenho resistência aos argumentos tradicionais. Para mim, não é (só) preço, déficit educacional, tecnologia ou investimento das escolas. É uma revolução cultural, uma mudança de paradigma que devemos comemorar, e que vai fazer bem para toda a educação superior.

Mas vamos ao que não é. "Ah, é mais barato". Tá certo, esse é difícil de combater. Um fator muito importante, um dos quatro atuais pilares para a tomada de decisão do sujeito, na minha modesta opinião (comodidade, preço, marca,  atendimento). Mas, se preço fosse assim tão determinante para a escolha, porque as diversas uniesquinas que estão espalhadas por aí, com preços muitas vezes mais baixos que os de EaD, não levaram esses alunos? Basta dar uma olhada nas propagandas dessas instituições e ver que, em preço, elas concorrem bem.

"Ah, o déficit educacional está aí". De fato, o Brasil só tem 16% de adultos com ensino superior. Em 2014, a média mundial era de 35% e a gente apanhava do Chile (21%), Colômbia (22%) e Costa Rica (23%). Imagina: o Plano Nacional de Educação (PNE) sonhava que em 2020 teríamos 33% da população de 18 a 24 anos cursando um ensino superior (fechou 2017 com 19,7%). O dado só mostra, no entanto, que se tem muito a crescer, mas esse é um déficit histórico e a abertura de mais e mais cursos presenciais buscava esse suposto novo público. No entanto, porque ele foi para a frente do computador e não para a sala de aula?

"A tecnologia do EaD melhorou muito". Houve uma substancial melhoria nos processos de produção do EaD, tornando-os mais atrativos esteticamente. Mas a essência do Ead com a tecnologia não mudou: permanece seu aspecto mediador e, infelizmente, em grande parte de boa parte dos cursos prevalece a fórmula video-aula/texto-pra-ler/exercício-pra-responder/prova-presencial-pra-fazer. Essa 'tecnologia/metodologia' não mudou substancialmente nas últimas décadas e não vejo como alguém tenha tomado uma decisão do tipo "ah, vou fazer EaD porque a tecnologia melhorou muito!" Melhorou em relação a quê, uma vez que a maioria dos novos ingressantes EaD não tem experiência com plataformas de AVA (Ambientes Virtuais de Aprendizagem)? Portanto, um dos pilares, o da comodidade me parece muito mais substancial que a tecnologia. Ou seja, olha que beleza eu mesmo poder fazer o meu horário, não precisar pegar transporte, estudar nas horas que me for mais adequado! Mas, ora, porque eu não consigo? Porque a comodidade nunca foi um diferencial tão fundamental quando o discurso transparecia?

"As escolas investiram muito". Essa é fácil: estão investindo muito, não porque agora acreditam na qualidade social do EaD, mas por total falta de opção. Não é o seu investimento que está atraindo os alunos, são os alunos, ao buscar o EaD, que estão obrigado as escolas a investir. No entanto, embora o crescimento até agora tenha dependido de um investimento quantitativo em tecnologia de informação, não há dúvidas que, deste momento em diante, a qualidade de recursos para o EaD, no atendimento e na tecnologia do conhecimento, irá fazer a diferença. No orçamento, se verá que é pura ilusão que EaD é muito mais barato que o presencial. De fato, os custos baixam, mas não é um recuo tão exorbitante. Para ficar barato para a escola, cairá a qualidade. Mas, daí, já era assim no presencial, não é?

É bom cuidado com isso, pois outro fator diferencial será a marca da instituição, o que ela agregar em qualidade ao seu produto, inclusive ao quebrar um dos clássicos paradigmas, a de que 'curso superior bom é caro'. Como preço não poderá ser ainda mais determinante do que é, vai restar fazer a melhor experiência acadêmica/tecnológica com os mais baratos recursos de tecnologia da informação e comunicação, sem perder qualidade. Parece que o segmento, inclusive, tem dado sinais que tem entendido isso. Segundo o Censo, apesar dos cursos EaD terem menos doutores que os presenciais, no conjunto dos docentes com titulação stricto sensu (mestrado e doutorado), o Ensino a Distância têm mais professores com essa formação que o presencial.

Por fim, então, minha teoria mais querida: estamos acordando (tanto no sentido da palavra de sair do sono, como também estabelecendo um novo acordo). Alguém uma vez nos disse para não confiar na Educação a Distância, e a gente acreditou. Na realidade, esse sujeito é o mesmo que nos disse há muito mais tempo atrás, talvez há 400 anos, que é preciso que alguém nos dê uma mão para que possamos fazer o nosso caminho. Uma cultura patriarcal, que nos deixou submisso, ora ao Rei, ora a Deus, ora ao governador, chefe de repartição, dirigente do partido político, doutor advogado/médico, disciplinário, professor tradicional, qualquer um que, munido de informação privilegiada, era o responsável para nos conduzir, desde para a vida eterna como para um emprego, nos indicando quem deveríamos ser e onde aprender sobre.

Ora, como conhecimento é poder, de cara o ensino superior nos foi colocado que não era para todos. Afinal, alguém tem que ficar na base, sustentando o sistema. Mas, na inevitabilidade de se superar o desejo das pessoas em se aprimorarem, era melhor então colocá-los sob o tacanho presencial, mesmo que a cabeça do sujeito estivesse a milhares de milhas de distância. Aprimorando a ideia, a venda da imagem do povo indolente, que não consegue se concentrar, não consegue ter foco e disciplina, características fundamentais para quem quer fazer EaD. Quem tem essas características, precisa de um guia. Mesmo porque, pior, seríamos um povinho desonesto, que, não tendo o olho do patrão/professor/disciplinário em cima, iria bolar um sem número de artimanhas para burlar o sistema e fazer com que outro fizesse o curso por ele e o larápio do conhecimento tiraria o diploma sem esforço. Compramos bem o uniforme e ainda encaixamos a carapuça. Mas a pergunta que importa é: quem nos fez acreditar nisso?

Porque, convenhamos, os cursos presenciais também tem seus alunos verdadeiramente indolentes, que se aboletam nas costas dos colegas mais generosos e se aproveitam dos professores menos severos (e temerosos de perderem o emprego caso sejam alvo de reclamações sobre sua 'inflexibilidade' com a qualidade de ensino). E que assinam listas de chamadas para ausentes, estão presentes em corpo, mas com o espírito navegando nas redes em plataformas virtuais do outro lado do oceano cibernético. Julgo que são as exceções, que são os seres humanos com dificuldades de entender o seu papel social, mas que estão presentes em qualquer ambiente, presencial ou virtual (embora costumam ser mais vistosos). E as escolas, depois de um percalço aqui, outro ali, entregam sem problemas, ao estudante, ciosas em cumprir seu contrato, o que o estudante acredita que pagou: um diploma. Portanto, o problema entre EaD e presencial nunca foi a batalha pela qualidade, mas a visão de dependência social do sujeito.

Mas agora, parece que as coisas estão mudando. Talvez pelo desemprego que, também não sendo uma novidade, parece ter uma característica diferente de tempos atrás. Seus índices já não mudam mais com políticas econômicas de curto prazo e há inúmeras vagas abertas, mas que não são ocupadas por falta de qualificação. E já se interioriza na população que aqueles que tem curso superior, quando empregados, ganham melhor. E que não se trata mais de uma conquista somente reservada aos do topo, aos que moram nas grandes cidades, aos filhos dos formados. Ou seja, EaD também tem um forte apelo de inclusão social, pois cada vez mostra que educação superior pode ser para uma fatia maior do que antes aventada.

A desilusão com nossos supostos líderes patriarcais também tem feito que olhemos mais para nossos próprios desejos e menos com o que nos pedem para fazer: "trabalhem de cabeça baixa, sem muitas pretensões, que cuidarei de ti", já não cola. Se percebe que se se quer acender socialmente pelo conhecimento, o caminho é só o seu, não o indicado pelo andar de cima. Daí, lembrando novamente dos pilares, o meu curso superior dever ser barato, poder ser pago sem enormes sacrifícios (pois certamente já os têm em número suficiente); ter uma marca que eu possa reconhecer e/ou me identificar; ser cômodo (agora livre a pecha de que sou um preguiçoso de natureza) e - agora vem o último fator - me tratar como gente!

É esse fator, o do atendimento (acadêmico em conjunção com o operacional) é que vai separar os bons e maus EaD daqui em diante. Esse mesmo sujeito que agora se liberta do patriarcado, quer ser valorizado e quer ser visto, ouvido, e ter uma experiência acadêmica (ou você acha que só os universitários ricos e presenciais a podem ter?). Daí, volto a ideia da tecnologia, do custo EaD e da mudança de metodologia de ensino e aprendizagem. Será preciso que essas escolas realmente invistam em tutoria, aqueles momentos onde ele possa realmente se sentir aluno, tendo um professor para interagir e mediar a construção do conhecimento, um docente devidamente formado - mestrado e doutorado - disponível, com qualidade de estrutura de atendimento e humano número de alunos sob sua guarda. E a tecnologia que permita isso acontecer (só chat, por exemplo, não resolve). Ter conteúdo de verdade, oferecido em diversas linguagens (e não só texto seguido de novo texto, em fonte Times, corpo 11, e seguido por uma maçante aula de 50 minutos, com um pobre coitado professor mal iluminado e sem treinamento para palestrar para câmeras de video). Não precisa e nem deve ser um show pirotécnico por unidade disciplinar, mas uma mistura de produtos acadêmicos que auxilie os alunos a estudar pela descoberta e pelo prazer do aprender.

E os polos deverão deixar de ser uma sala empilhada de cadeiras universitárias com um televisor à frente, no estilo Telecurso. Mude-se para ser um local de encontro, se o aluno assim o desejar, um porto seguro para se encontrar a cara da instituição, e não a placa com a logomarca. É preciso tangibilidade no EaD, porque somos uma espécie sedenta do outro, do seu toque ao seu olhar, e é o polo que pode oferecer isso. Daí, não é que é importante a localização? A educação é a distância, mas onde fica mesmo o polo da minha escola (olha o valor da marca!) para que eu possa fazer a prova e ainda tomar um cafezinho com a secretária da secretaria? Ou, melhor ainda, encontrar com o meu tutor e tirar minhas dúvidas presencialmente? Uai, não é a mesma coisa que o presencial, então? Claro que não: uma coisa é eu ter que ir todo o dia bater ponto (argh!). A outra é ir quando eu quiser e quando me for mais conveniente. Já pensou se o restante da vida cotidiana fosse assim?

Significa que a graduação presencial vai acabar? Olhaí o alarmismo comum quando há quebras de paradigmas. Imagina-se que, para acontecer o novo, o velho deve morrer. É claro que não, sempre haverá pessoas que vão preferir o presencial, que a obrigação de estudar e o prazer de socializar diariamente são insubstituíveis, e ouso até dizer que é gente pra caramba, dado ao nosso histórico cultural de agregarmos uns aos outros. E que ainda se levará gerações para perdermos - se é que um dia isso acontecerá - essa nossa dependência patriarcal. Haverá, inclusive, mercado para os cursos caros e baratos presencialmente, cada um deles atendendo especificidades profissionais.

Acredito até que a mudança de paradigma, com a diminuição do patriarcado do conhecimento, vai, inclusive, melhorar ainda mais o presencial, com um professor menos carregado da obrigação de ensinar, mas com muito mais cuidado e prazer em direcionar o que os seus alunos devem aprender. Já os alunos iriam com um espírito mais leve, não esperando encontrar na escola o único salvador de seu futuro, mas uma equipe e uma estrutura que o ajuda a construí-lo por conta própria.  Pode ser essa a visão de instituições, principalmente as federais, que estão diminuindo a sua oferta de EaD. Não é nadar contra a maré, mas acreditar que um país que precisar dobrar sua população de graduandos, tem mar para todo mundo.

Claro, tudo isso pode ser romantismo meu. Vá lá! Pode ser, o tempo dirá. Mas que algo está acontecendo, está. E não está muito distante de acontecer.

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