Atíria x Harry Potter: o dilema do Ensino Médio

É preciso sair da armadinha na qual entrou o Ensino Médio. Imagem de Wokandapix por Pixabay
O Ensino Médio, me parece, perdeu o sentido (no amplo espectro da palavra, tanto no de direção, como no de sentimento, que cause alguma emoção no estudante que não só desânimo). Era para que o jovem, depois de anos colhendo e processando informação concreta no Ensino Fundamental, desenvolvesse um pensamento abstrato, transformando dados em Conhecimento. Era mesmo um momento rico onde, agregada a essa mudança de percepção do mundo, do concreto para o abstrato, de se enxergar o invisível atrás do visível, somava-se as ciências que dessa percepção depende, como a Biologia, a Química e a Física. Afinal, somente extrapolando o que se observa no mundo concreto que se pode imaginar uma hélice de DNA, uma molécula de carbono ou as forças gravitacionais das galáxias.

Mas vamos começar de onde tudo dançou, para usar uma expressão de quando eu fazia o Ensino Médio. Do lado dos jovens, que alimentam uma estatística de desistência de quatro para cada dez, o tal do pensamento abstrato já é amplamente desenvolvido fora da escola, tanto por um mundo midiático altamente complexo e que sinaliza uma necessidade de amadurecimento à força para dar conta, como por jogos eletrônicos, produções audiovisuais com narrativas sofisticadas e intrincadas, acompanhadas ou fruto de uma literatura que privilegia o emaranhado de tramas melindrosas e paralelas.

Outra dia fiz uma prova métrica: somei as lombadas dos livros da coleção Vaga-lume, da Editora Ática. Precisei de cinco daqueles clássicos para ter o mesmo número de página de apenas um dos livros do Harry Potter. "Ah, mas a literatura era melhor!", dirão alguns saudosistas. Bem, convido a ler o bruxo infanto-juvenil, e ver que, se as tramas não são exatamente um Shakespeare, não perdem em nada para o mistério da conhecida borboleta Atíria. Por esse mesmo raciocínio, é preciso ser um sujeito com um pensamento abstrato bem treinado para acompanhar uma saga de filmes de super-heróis que dura mais de uma década, com filmes, séries de TV e HQs se interligando, e tudo, num Ultimato final, ainda fazer sentido (mesmo que o sujeito tenha perdido uma boa parte das inúmeras partes que compõe o todo).

Ou seja, se o pensamento abstrato desses meninos já está a mil, para quê o Ensino Médio? Ainda mais que a escola ainda mantêm o ritmo e a metodologia do Ensino Fundamental: vamos socar informação para ver se alguma coisa fica! Numa determinada idade, isso faz sentido, pois tudo é novidade e o cérebro está ávido para entender o mundo. Daí, sem problema entregar a informação de que o sangue que o garoto vê sair do joelho está dentro de um complexo de canos que está por todo o seu corpo. Aquela figura da anatomia do caderno de ciência tranquiliza o porquê dele sentir o peito pulsar, pois o coração ali está.

Mas a escola é pressionada com o que acontece no que descrevi naquele parágrafo anterior, somada a uma intimidação social de que, como a informação está em todo lugar e há uma impressão que tudo deve-se saber, os jovens têm que aprender mais rápido e ter mais conteúdo, senão vão ficar de fora do mercado de trabalho. Agrega-se a esse panorama uma política de avaliação arcaica que, mesmo com todas as conquistas da Educação, cobra decoreba dos jovens. E tudo isso ainda cria um monstro ainda maior, que vem lá do Ensino Fundamental, a discrepância do que se tenta ensinar e a capacidade cognitiva que o estudante tem de aprender: simplesmente temáticas que hoje são antecipadas nessa etapa escolar não encontram respaldo nas conexões cerebrais desenvolvidas naquela idade.

A falta de sintonia entre o ensino e a aprendizagem cria um dos maiores dos males do nosso século: distúrbios de ansiedade. Ora, o professor manda aprender (não por sua responsabilidade, está lá na apostila e no currículo, que deve ser ensinado em uma semana o equivalente o que a ciência levou gerações para desvendar). O aluno ainda não tem desenvolvimento mental para absorver e fazer as conexões necessárias, mas tem que fazer a prova! Se tirar nota ruim, já viu, né? E se não consegue, mas também não tenho condições básicas para tal, o sentimento é de derrota antecipada, uma ansiedade do mal.

Veja bem, ansiedade não é ruim, ruim é quando, ao invés de servir para o seu propósito, de nos deixar espertos, nos leva para um mundo de angústia e impotência, por não darmos conta do que nos é imputado e cobrado. E toma jovens dançados no presente e adultos dançados no futuro, gente que acredita que ser feliz é ter o sucesso do youtuber do momento, ou ficar milionário com uma startup genial criada ontem. Faltou vivenciar o mundo dos milhares de invisíveis usuários da plataforma de video e startups que não deram certo e que, na realidade, é que é o padrão. Somos mais a soma dos nossos erros do que a colheita dos acertos, e que mesmo o mundo complexo de um Harry Potter, um Guerra dos Tronos ou Universo Marvel, é pouco diante das séries de circunstâncias, contextos e coincidências que levaram à fama o influenciador do You Tube e a fortuna ao empreendedor digital.

Alerto aqui que sei que há várias escolas de excelência, e outras tantas que batalham demais em projetos inovadores e ousados, tentando fugir desta armadilha, e, portanto, nos proibindo de fazer uma generalização completa. Para conhecer, basta procurar em canais como YouTube, Canal Futura e Todos pela Educação para achar exemplos inspiradores. Mas, ao que parece, tais experiências não têm contaminado toda a comunidade escolar, dado os números de evasão.

Um exemplo de que nem a tecnologia resolve se as pessoas não resolverem entre si primeiro o que querem do Ensino Médio, foi a pesquisa do professor de química Riveres Reis de Almeida. Ao testar dez softwares educativos de sua área, descobriu que apenas um não reproduzia a metodologia do decoreba, em detrimento à interatividade voltada para construção do conhecimento pela experimentação. Aí fica difícil, se até o aplicativo for uma reprodução da aula careta da escola!

Mas, eu tenho uma solução!  Vamos trazer a Iniciação Científica, aquela prática mais associada aos cursos superiores, para o Ensino Médio! Vamos colocar a garotada para pensar científicamente, descobrir o mundo pelas suas próprias experiências, e não a dos livros ou dos professores. Dado o avançar da hora, fica como tema do próximo artigo. Não perca!

Mais informações sobre o estado do nosso ensino médio, sites como Todos pela Educação ajudam muito.

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