Atíria x Harry Potter: o dilema do Ensino Médio
É preciso sair da armadinha na qual entrou o Ensino Médio. |
Mas vamos começar de onde tudo dançou, para usar uma expressão de quando eu fazia o Ensino Médio. Do lado dos jovens, que alimentam uma estatística de desistência de quatro para cada dez, o tal do pensamento abstrato já é amplamente desenvolvido fora da escola, tanto por um mundo midiático altamente complexo e que sinaliza uma necessidade de amadurecimento à força para dar conta, como por jogos eletrônicos, produções audiovisuais com narrativas sofisticadas e intrincadas, acompanhadas ou fruto de uma literatura que privilegia o emaranhado de tramas melindrosas e paralelas.
Outra dia fiz uma prova métrica: somei as lombadas dos livros da coleção Vaga-lume, da Editora Ática. Precisei de cinco daqueles clássicos para ter o mesmo número de página de apenas um dos livros do Harry Potter. "Ah, mas a literatura era melhor!", dirão alguns saudosistas. Bem, convido a ler o bruxo infanto-juvenil, e ver que, se as tramas não são exatamente um Shakespeare, não perdem em nada para o mistério da conhecida borboleta Atíria. Por esse mesmo raciocínio, é preciso ser um sujeito com um pensamento abstrato bem treinado para acompanhar uma saga de filmes de super-heróis que dura mais de uma década, com filmes, séries de TV e HQs se interligando, e tudo, num Ultimato final, ainda fazer sentido (mesmo que o sujeito tenha perdido uma boa parte das inúmeras partes que compõe o todo).
Ou seja, se o pensamento abstrato desses meninos já está a mil, para quê o Ensino Médio? Ainda mais que a escola ainda mantêm o ritmo e a metodologia do Ensino Fundamental: vamos socar informação para ver se alguma coisa fica! Numa determinada idade, isso faz sentido, pois tudo é novidade e o cérebro está ávido para entender o mundo. Daí, sem problema entregar a informação de que o sangue que o garoto vê sair do joelho está dentro de um complexo de canos que está por todo o seu corpo. Aquela figura da anatomia do caderno de ciência tranquiliza o porquê dele sentir o peito pulsar, pois o coração ali está.
Mas a escola é pressionada com o que acontece no que descrevi naquele parágrafo anterior, somada a uma intimidação social de que, como a informação está em todo lugar e há uma impressão que tudo deve-se saber, os jovens têm que aprender mais rápido e ter mais conteúdo, senão vão ficar de fora do mercado de trabalho. Agrega-se a esse panorama uma política de avaliação arcaica que, mesmo com todas as conquistas da Educação, cobra decoreba dos jovens. E tudo isso ainda cria um monstro ainda maior, que vem lá do Ensino Fundamental, a discrepância do que se tenta ensinar e a capacidade cognitiva que o estudante tem de aprender: simplesmente temáticas que hoje são antecipadas nessa etapa escolar não encontram respaldo nas conexões cerebrais desenvolvidas naquela idade.
A falta de sintonia entre o ensino e a aprendizagem cria um dos maiores dos males do nosso século: distúrbios de ansiedade. Ora, o professor manda aprender (não por sua responsabilidade, está lá na apostila e no currículo, que deve ser ensinado em uma semana o equivalente o que a ciência levou gerações para desvendar). O aluno ainda não tem desenvolvimento mental para absorver e fazer as conexões necessárias, mas tem que fazer a prova! Se tirar nota ruim, já viu, né? E se não consegue, mas também não tenho condições básicas para tal, o sentimento é de derrota antecipada, uma ansiedade do mal.
Veja bem, ansiedade não é ruim, ruim é quando, ao invés de servir para o seu propósito, de nos deixar espertos, nos leva para um mundo de angústia e impotência, por não darmos conta do que nos é imputado e cobrado. E toma jovens dançados no presente e adultos dançados no futuro, gente que acredita que ser feliz é ter o sucesso do youtuber do momento, ou ficar milionário com uma startup genial criada ontem. Faltou vivenciar o mundo dos milhares de invisíveis usuários da plataforma de video e startups que não deram certo e que, na realidade, é que é o padrão. Somos mais a soma dos nossos erros do que a colheita dos acertos, e que mesmo o mundo complexo de um Harry Potter, um Guerra dos Tronos ou Universo Marvel, é pouco diante das séries de circunstâncias, contextos e coincidências que levaram à fama o influenciador do You Tube e a fortuna ao empreendedor digital.
Alerto aqui que sei que há várias escolas de excelência, e outras tantas que batalham demais em projetos inovadores e ousados, tentando fugir desta armadilha, e, portanto, nos proibindo de fazer uma generalização completa. Para conhecer, basta procurar em canais como YouTube, Canal Futura e Todos pela Educação para achar exemplos inspiradores. Mas, ao que parece, tais experiências não têm contaminado toda a comunidade escolar, dado os números de evasão.
Um exemplo de que nem a tecnologia resolve se as pessoas não resolverem entre si primeiro o que querem do Ensino Médio, foi a pesquisa do professor de química Riveres Reis de Almeida. Ao testar dez softwares educativos de sua área, descobriu que apenas um não reproduzia a metodologia do decoreba, em detrimento à interatividade voltada para construção do conhecimento pela experimentação. Aí fica difícil, se até o aplicativo for uma reprodução da aula careta da escola!
Mas, eu tenho uma solução! Vamos trazer a Iniciação Científica, aquela prática mais associada aos cursos superiores, para o Ensino Médio! Vamos colocar a garotada para pensar científicamente, descobrir o mundo pelas suas próprias experiências, e não a dos livros ou dos professores. Dado o avançar da hora, fica como tema do próximo artigo. Não perca!
Mais informações sobre o estado do nosso ensino médio, sites como Todos pela Educação ajudam muito.
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