Ah, se não fosse a tecnologia a gente era comida de tigre-dente-de-sabre!

Mais de 100 anos para dois segundos e meio? Imagem de annca por Pixabay

Da série 'Sem tecnologia, não seríamos nada!' Pois é, me surpreendi ao ler na seção Última Página, da Superinteressante de fevereiro de 2020: mesmo depois de 124 anos, a diferença do recorde olímpico dos 100 metros no atletismo é de apenas 2 segundos e 37 centésimos. Ou seja, menos tempo que você gastou lendo essas linhas. O que quero dizer com esses números: que, sim, o que fez a gente sair da série D da natureza e ficar no topo da escalada evolucionária no planeta é a nossa capacidade de argumentar, raciocinar, fazer ciência (logos) sobre nossas técnicas (techne). Porque, se fosse depender desse corpinho frágil, já tínhamos sido extintos há um tempo.

É isso mesmo, nós somos, no campeonato da natureza, uma espécie de Ibis, aquele time de futebol que apanha de todos os demais. Se a gente for fazer uma comparação, dá dó: somos fraquinhos a ponto de mal conseguir levantar metade do nosso peso, suscetíveis a morrer de dor de barriga porque comeu coisa do chão, raramente damos mais de uma cria por vez e, atualmente, a média é de duas por existência. Além de sofrermos de doenças que outros animais já superaram, ainda inventamos outras que eles não têm, como alcoolismo e demais dependências químicas, calvice e todas os demais agravamentos porque pensamos demais, como ataques cardíacos, estresse, depressão e consequências de nossos vícios, como diabetes e obesidade. E, claro, a gente corria bem menos que os tigres-dente-de-sabre. Mesmo os recordistas olímpícos.

Nossa, depois de escrever tudo isso, ainda me pergunto como ainda chegamos aqui. Opa, lembro do início do texto: por conta da tecnologia! Voltando aos dados da Super: o atual recorde olímpico dos 100 metros, de Usain Bolt, de 2012, é de 9'63", acima pouco menos de 20% do de Thoma Burke, em 1896 com 12'. No caso das mulheres, é ainda menor, sendo de 10'62" de Florence Griffith-Jones, em 1988, contra 12'2" de Elizabeth Robinson, em 1928, apenas 13% de diferença. O que me despertou a atenção é que a revista fez a comparação com outras modalidades, como a natação, onde as diferenças foram na casa dos 42% (masculino) e 35% (feminino). Ora, de fato aí tivemos avanços muito mais significativos no que condiz sua tecnologia: piscinas sofisticadas, sem marolas, com água tratada e maiôs especiais para favorecer o deslocamento, e o desenvolvimento de técnicas e tecnologias de controle da evolução corpórea dos atletas para se adaptar a esse meio. Já os 100 metros, vamos combinar, continua do mesmo jeitinho: a correria do vamos ver quem chega primeiro! Claro, os atletas também tiveram excelentes mudanças na sua preparação, com alimentação específica, aparelhos de musculação, monitoramento da evolução muscular, sapatilhas que ajudam no impulso e na fixação, além de serem mais leves.... o que só reforça o meu argumento: ainda assim, só conseguimos dois segundos e meio um século e um quarto depois! O nosso tigre ainda lamberia os beiços...

Mas não é para ficar triste, tipo, 'nossa, então somos mesmos limitados e já batemos no nosso limite'. Ao contrário, apenas prova que, assim como a morte - a fronteira que nos dá a razão para viver, mas esse é um assunto filosófico para outro dia -, nossas limitações é que fizeram com que inventássemos extensões de nossos corpos, que nos tirou daquela condição subcósmica a que os demais Homo foram condenados. E é por isso que nossa espécie tem dois sapiens como sobrenome, como para reforçar que o que nos distingue é nossa sabedoria. Atenção, sabedoria não quer dizer inteligência (volto nisso adiante), mas com a condição de quem tem conhecimento. E conhecimento é construído pela experiência, o olhar para o que aconteceu e novas conclusões do que foi feito e do que poderá ser aperfeiçoado. E de que maneira podemos melhorar.

Um exemplo disso está na mesma página da Super. O salto em altura tem significativas diferenças de 32% (homens) e 28,7% (mulheres) e poderia destruir meu argumento anterior, pois, basicamente, também é correr e saltar, sem interferência de outros objetos. No entanto, um dia de 1968, o norte-americano Dick Fosbury pensou "porque não saltar de costas, ao invés de frente como meus colegas?" Era sua sapiência funcionando, olhando, construíndo conhecimento e experimentando. Deu certo, a barra subiu significativamente, pois todos os seus competidores acharam boa a ideia. No detalhe: isso também só foi possível porque, alguns anos antes, outro alguém (esse bravo desconhecido!), pensou, "que tal a gente colocar um colchão para a rapaziada depois da barra?" Ou seja, acredito que a sapiência do Dick teria outras conclusões caso ele tivesse que estatelar as costas num chão duro...

Outro bom exemplo de sapiência: o citado Ibis, mesmo sendo pior time de futebol, conseguiu se adaptar e achar seu espaço, justamente utilizando de sua macrodeficiência para sobreviver nesse ambiente um tanto hipócrita, se transformando num queridinho num país onde se ama amar os mais fracos (mas, sem compromisso, viu?), vendendo camisetas e recebendo doações de atenção esporádicas.  

A tecnologia, muito mais do que o aparelho que a gente liga na tomada, nos definiu enquanto espécie e traçou nosso caminho no mundo. Embora sejamos seus criadores, ficamos refêns de nossas crias, mas de boa! O chifre definiu o rinoceronte. Nossa vantagem é que inventamos modos de fazer nosso chifre com pedras, paus, aço. Com com eles conseguimos nos defender e ajudamos na extinção o tigre-dente-de-sabre.

Bem, infelizmente, usamos o chifre do rinoceronte para fazer afrodisíaco, levando aquela espécie também a quase extinção. Porque, afinal, sapiência não que dizer inteligência. A verdadeira inteligência, a capacidade de se adaptar ao meio ambiente que, claro, tem a ver com a sapiência, mas não só (sim, é um conceito polêmico, mas é o que adotei, tá legal?). Os dinossauros se mostraram seres de sangue quente mais inteligentes que a gente, e só se ferraram por conta de uma tragédia externa, fora do seu controle. E, ainda assim, conseguiram chegar aos nossos tempos com suas herdeiras galinhas e demais parentes emplumadas.

Já a nossa consciência, que é confundida com inteligência, quando é, muitas vezes, o contrário dela, já nos levou perto da extinção algumas vezes. Aliás, se não é o que está fazendo justamente agora, com essa aceleração do aquecimento global exatamente pelos equipamentos tecnológicos que criamos para correr, comer, viver melhor. O que só comprova que tecnologia é o que nos define e nos trouxe até aqui, mas não é o que nos garante que nos levará adiante. Porque, desconfio, não é exatamente nossa melhor representação de inteligência.

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