Manual do Escoteiro Mirim: quando ciência era divertida

Publicação ensinou gerações que a ciência é divertida e útil. Crédito: Editora Abril

O Manual do Escoteiro Mirim foi o Google impresso para toda uma geração. E o mais importante: sem dispersão anárquica e focado na ciência da melhor forma possível, sua utilidade divertida. Para os saudosistas, a Editora Abril anuncia que vai relança-lo, quase cinquenta anos depois de seu estrondoso sucesso. Para quê falar sobre isso? Tal notícia só me lembra que a divulgação científica deveria ter nas crianças um foco primordial, mas hoje se restringe a coletar pontos na Capes, numa espécie de Dotz acadêmico.


Para quem não conhece, o Manual do Escoteiro Mirim era, na fantasia, o livro de consulta dos três sobrinhos do Pato Donald, Huguinho, Zezinho e Luizinho, escoteiros de carteirinha (de verdade, literalmente), que tinha as soluções dos complexos problemas em que as crianças se viam envolvidos. No mundo real, era um almanaque com as mais diversas - e coloca diversas e divertidas aí - orientações, dicas, informações científicas, curiosidades... Claro, havia uma ênfase na ideia do escotismo, ou seja, como aproveitar a natureza, respeitando-a, mas também como sobreviver a ela na remotíssima possibilidade de nos encontrarmos perdidos no parque da cidade.

Mas lá também aprendi coisas que ainda uso, como entender um mapa, a diferença da hierarquia nos uniformes militares, as primeiras placas de trânsito, mas também a dividir uma folha em quadrados para desenhar melhor, como resolver soluços, que o Tupi era uma língua anterior ao Português (tinha até um minidicionário...), e como queimar papel (e outras coisas) usando uma lente. Olhei, instigado pela publicação, para o céu estrelado e nunca mais esqueci que ali havia um universo infinito de possibilidades de conhecimento. Não tenho dúvidas que, se gosto de ciências hoje, devo um bocado àquelas tardes que passava tentando reproduzir os nós de marinheiro ou como tirar as manchas da roupa sem que minha mãe percebesse.

A divulgação científica é exatamente o que está explícito no nome: a ciência sendo divulgada, levada para fora do seu limitado círculo de gênese, importante, mas, muitas vezes, um cadafalso afastado do mundo. Naqueles idos de 1970, talvez reflexo da ampliação dos conceitos de liberdade e universalidade do conhecimento gritados na década anterior, tinha-se em conta que a ciência deveria ser entendida por todos, a começar pelos jovens. O exemplo mais clássico é a Vila Sésamo, programa infantil surgido em 1969 nos EUA e 1972 no Brasil. Haviam outros, como Sítio do Pica Pau Amarelo introduzindo ciência nas traquinagens do Pedrinho. Para os mais velhos, era a época de entender sobre sistemas ciborgues com O Homem de Seis Milhões de Dólares, dobras espaciais e relações interculturais em Jornada nas Estrelas e como fazer sua própria pólvora com MacGyver. No início dos anos 1980, revistas como Ciência Hoje (da SBPC) e My Interesante (que viria para o Brasil como a SuperInteressante) mostrariam esse anseio de elevar a ciência à pauta popular.

Como sabemos, algo desandou. Nas lojas de brinquedos, sumiram os laboratórios de química. Não têm mais brinquedos de armar, as miniaturas Revell que, no mínimo, ensinava com quantas partes se faz um avião, mas hoje pomposamente chamado de plastimodelismo, nicho de adultos nerds. Ainda se pode como construir seus próprios brinquedos, desde que respeite integralmente as instruções da caixa (eu mesmo tinha uma frota estelar inteira construída com os vidros de perfume e embalagens dos cosméticos da minha mãe). O que aconteceu? Claro, isso vale uma boa pesquisa, mas desconfio que a escola, assoberbada com novas obrigatoriedades, entre elas encher os alunos de novas informações que não vão lhe fazer qualquer sentido, mas podem cair no ENEM, viraram as costas para aquele movimento.

Garotos e garotas hoje aprendem no ensino fundamental I o que nós, talvez, fôssemos aprender no ensino médio. Esse excesso de conteúdos acabou também por jogar a ansiedade da meninada para a fantasia, o ponto de fuga. Ora, já que a ciência é essa coisa tão complicada, que tenho que estudar tanto para entender sabe Deus o quê, vamos para a escola de mágicas do Harry Potter onde a ciência é expulsa. Para entender o mundo, que nossa escola nos diz que é tão complexo, tão desigual e difícil de suportar, nos resta ir para a Terra Média de Senhor dos Anéis, onde tudo é mais fácil de entender (e olha que nem é tão simples assim, mas aqui fora é pior...).

Pois bem, é preciso que, então, vistamos nossas armaduras e resgatemos a ciência para as nossas crianças. Manual do Escoteiro Mirim deveria ser livro didático, ao invés daquelas apostilas geladas e que tem tanto atrativo para as crianças como os manuais de DVD têm para nós. Da mesma maneira, pais e educadores deveriam valorizar, primeiramente com sua leitura para dar exemplo, revistas como Ciência Hoje para Crianças (da SBPC), SuperInteressante e Galileu, aplicando nos filhos e estudantes. Sei da restrição dos professores para essas publicações, de que são resumões muitas vezes pouco precisos sobre a ciência. E daí? Ótima oportunidade para educar, para dizer que não é bem assim, mas que bom que você se interessou pelo assunto. Outro dia, uma delas explicava porque o pum é tão fedorento! Só dizer a palavra 'pum' para o meu filho, já o fez rir. E, como sabem os educadores, o riso é uma porta escancarada para o conhecimento.

Mais um pouco de reminiscência: após o sucesso do Manual, outros se seguiram, com dois destaques (do meu ponto de vista): o Manual do Prof. Pardal, ainda mais radical com a brincadeira de brincar com a ciência, dado que o personagem era um inventor hiperativo e imaginativo. Lembro de ter construído um periscópio super legal, que dava perfeitamente para verificar se o vizinho ainda vigiava as suas mangas. E o Manual do Peninha, que tratava de comunicação, mas com ênfase no jornalismo. Peninha era primo meio doidão do Pato Donald, jornalista que trabalhava no jornal do Tio Patinhas: tudo nessa frase ainda me faz rir ainda hoje, jornalista como doidão e descompensado, funcionário de um magnata avarento dono do maior jornal de Patópolis! De qualquer forma, taí uma publicação que moldou parte da minha vida: foi com ele em mãos que, junto com outros colegas, fundei meu primeiro jornal na escola, O Moita, pois ele ensinava, passo a passo, como fazer. Depois, descompensação após descompensação, não parei mais.

Talvez com as novas tecnologias, associado a um olhar mais benevolente dos educadores para essa divulgação científica mais 'popular', possam resgatar conteúdos que despertem novamente os jovens para a ciência, não como um peso para carregar até a prova do ENEM, mas como uma maneira eficaz de fazer o mundo ter sentido.

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