Sharenting: uma palavra nova para uma triste prática antiga.

A melhor coisa da educação é estar sempre aprendendo. Muito recentemente aprendi uma nova palavra, naquele mesmo esquema de síndrome colonialista que ainda cultivamos, o de usar outra língua para uma prática em português: sharenting. Para virgens linguísticos como eu, trata-se da famigerada atividade dos pais abusarem da imagem de seus pimpolhos nas redes sociais. Embora o termo seja novo, a prática é antiga, mas potencializada pelo alcance da internet e dos aplicativos de compartilhamento. Em todos os casos, é uma mistura de ignorância do mal, desespero pela relevância, um tanto de sem noção, uma sociedade consumista sem preocupações com direitos humanos que também têm os jovens (independentes da vontade dos responsáveis).

Devo a aprendizagem ao convite da Comissão de Mulheres da Câmara de Vereadores de Belo Horizonte para participar de uma audiência pública sobre o tema (aqui o link para quem quiser ver todo o evento, com vários especialistas). Aprendi que o termo é uma corruptela derivada de share (compartilhar em inglêscom parenting (que tem a ver com parentesco). Corruptela por que não me parece terem em suas origens a ideia da exposição excessiva entre prerrogativas parentais. A temática ganhou mais notoriedade por conta de caso da filha influencer com dois milhões seguidores que a mãe cancelou as contas e, assim, ela é que virou uma celebridade (será que só eu vi a ironia?).

Bom, mas o que importa é que, de fato, a coisa parece que está perdendo a noção (o que não é exatamente algo incomum nestes tempos). Pois bem, sabemos (embora nos enganemos) que não é uma prática nova: desde a festa de 15 anos da exibição da ‘nova mulher’ à sociedade, costume medieval ligado à menstruação, como mais recentemente vestir de Xuxa e Angélica com sainha assanhada, e, o cúmulo, ficarem orgulhosos de colocar a criança em uma nada ingênua dancinha na boca da garrafa. Com os homens, nada muito diferente: o orgulho de contar no churrasco que o filho já dirige sem habilitação e que já o levou para a zona, a versão contemporânea de mandar o garoto caçar sozinho na floresta.

Dá continuidade a uma prática social de adultizar a criança, um pouco para se livrar do peso, mas também atendendo uma sociedade de consumo que precisa de adultos para comprar e se vender. E uma pitada de código embutido de nossos tempos pré-industriais: nada a ver com livrar os jovens dos riscos inerentes à sua maturidade, mas certamente não vivemos mais na savana e nos campos, onde as carências e a pouca expectativa de vida obrigava a Humanidade a pular a adolescência. Acredito que podemos ajudá-los sem já arrumar marido quando a garota menstrua ou uma dar um pileque porque o garoto tem barba.

Mas todos sabemos de pais que procuram agências – mesmo sob risco de serem enganados – para colocar o ‘talento’ e as ‘belezas naturais’ de seus filhotes à disposição do mercado e, consequentemente, ter uma fonte de renda às custas dos seus jovens. Acho que poucos se atentaram que o The Voice Kids é o sonho de consumo do sharenting. Não é o modelo de sucesso que os pais perseguem? Não acompanho, mas pergunto quem o faz: nas perguntas feitas pela bancada, alguém perguntou como eles vão na escola? Como os pais se comportam quando o sucesso não vem? E o que eles querem fazer se o fracasso – muitíssimo mais comum – for o resultado?

A diferença geometricamente falando é a amplitude de exibição que as novas tecnologias de informação e comunicação trouxeram, a velocidade da propagação e a monetização (o que, talvez, até pode ser uma boa notícia para uma solução, já que o que é ganhado, pode ser taxado e ser alvo de políticas legais). No ciberespaço já estão lá as festas de 15 anos e os pais bebendo com os seus filhos menores de idade.

É importante dizer que esse não é um debate fácil e parabenizei, naquela ocasião, a Comissão por trazê-lo: há uma tendência a apontar os que pensam no tema como moralistas, já que é tão moderno…. Não é moderno nada! Infância e adolescência, essas sim são uma consciência moderna, porque antes de termos consciência das importantes características dessas fases, por milhares de anos a humanidade colocava seus jovens, assim que podiam empunhar uma ferramenta, para trabalhar, fazendo justamente a adultização. Mas, naqueles períodos, necessária para sobrevivência do grupo humano. Nestes tempos muito mais complexos – onde é preciso tempo e Conhecimento para não enlouquecer -, manter essa prática faz justamente o contrário, só atrapalha o potencial da Humanidade.

Mas…. É importante também tirar um certo peso das famílias. Uma parte significante acha mesmo que está fazendo o melhor para os seus filhos. Sim, tem muita gente inocente. O problema é mesmo aqueles pais que colocam sua criança tomando banho, que acha uma gracinha, quer dividir com o mundo, não sabe que essas fotos pueris, por exemplo, abastecem um mercado de pornografia infantil na internet profunda. O que dirá as fotos e os vídeos muito bem trabalhados para uma exposição artística?

E é preciso alguém relembrar aos responsáveis que uma cobrança sobre uma carreira artística pode ser danosa para a saúde mental, quando não fatal para esse jovem, como já cansamos de ver nos ídolos artísticos, e em maior medida justamente aqueles que iniciaram a sua vida midiática muito jovens, como Britney Spears e Michael Jackson, só para pegar os mais pops. E olha que só vemos os que, de alguma maneira, ficaram famosos!

E vamos combinar de uma vez por todas? A desculpa de “eles estão fazendo o que gostam” não é, nem de perto, uma boa desculpa! Está muito mais para terceirizar a responsabilidade para os jovens, o que acrescenta mais peso nas cabecinhas ainda sem maturidade para entender que, vindo o fracasso, não é sua culpa também. É uma excelente frase para tirar toda a responsabilidade de quem tem toda a responsabilidade.

Significa que se deve eliminar a presença de menores de idade e seus dotes artísticos da internet? Ora, em qualquer atividade humana, o cometimento, o tal do bom senso que anda perdendo do sem noção seguidamente, deveria voltar a dar as caras. Até o publicitário mais incompetente sabe que uma criança tem a capacidade natural de nos chamar a atenção. Sendo assim, pode-se incentivar um jovem no uso das mídias digitais, mas se o retorno for em ganho direto e salutar para o jovem (e que não seja o último modelo do tênis de marca!). Se ele pode aprender algo positivo, tanto no uso da tecnologia midiática, como instrumento educacional, exercício de seus próprios direitos de cidadão, por que não? Sim, pode iniciar uma experimentação artística, mas sempre orientado, fiscalizado, editado, sem fins lucrativos imediatos, pois, como dito, a possibilidade de fracasso é infinitamente maior do que um sucesso (termozinho sem vergonha, que tem seus parâmetros no mercado de consumo e não na satisfação pessoal). Tem que ver o que é propício, para si, para a sua idade, para a internet rasa e profunda. E, PRINCIPALMENTE, se é algo que pode, mesmo que em menor medida, prejudicar o seu futuro e sua socialização, principalmente quando não teve oportunidade ou maturidade por decidir por si próprio. A Internet, senhores, é inesquecível, vingativa, um fantasma aterrorizante. Ninguém merece ter uma vida plena e ainda ser rotulado como a criança que dançava na boquinha da garrafa!

Mas é também importante lembrar que é ilusão acharmos que há reversão no uso das redes. Eu não consigo controlar como gostaria o celular do meu próprio filho! Daí as eternas tentativas e vigilâncias de se usar os critérios em que imperam o cuidado, o Conhecimento, o raro bom senso e a empatia – se eu fosse essa criança, eu gostaria de ter essa imagem eternizada daqui 20 anos? E, sim, não faltam profissionais, on e off line, para nos ajudar a entender o que é sexualização acerbada, consumismo X consumerismo, sofrimento mental infanto-juvenil, direitos autoriais e de imagem, segurança cibernética e toda uma floresta sombria de ameaças que cerca um simples post.

Ok, é muito difícil! Mas nesta época de superexposição de informação sem controle, debates como esse são um primeiro passo. A coisa está tão descontrolada que, imagino, boa parte dos aqui leitores vai saber o que estou falando: mais de 75% dos problemas escolares extra-classe vem dos whatsapp dos familiares (não seja machista e chame de ‘whatsapp das mães’! Somos todos uns brigões sem noção!). É uma chuva de exposição de mau gosto e completa loucura realizada pelos parentais: meu filho é melhor que o seu, você devia é cuidar do mal cheiro dele, a sua filha é que está gorda…. Tenho muita dó, muita mesmo, dos pobres dos coordenadores escolares, tendo que fazer terapia de grupo de pais enlouquecidos por quaisquer que sejam os motivos.

Como sair disso? O melhor seria pela educação, mas em duas frentes: a primeira, campanhas e políticas para os responsáveis. Como dito, eu sinceramente, ou romanticamente, penso que a maioria não sabe o mal que está fazendo. Temos uma sociedade de deslumbramento e eles também são vítimas. Já a outra frente são as escolas. Aí complica, mas é preciso coragem. É preciso que a escola seja o contraponto dos pais…é difícil, mas tem a vantagem de que os jovens já têm a tendência a serem contra nós, os pais! Assim, deixar bem claro os grandes danos que podem causar uma exposição equivocada, inclusive usando exemplos ali do lado, que não faltam. Eu digo que é coragem, porque as escolas privadas estão em crise e a última coisa que eles querem é brigar com os pais e perder alunos. Mais uma oportunidade da escola pública ser a vanguarda esse exemplo. Outro complicador: como ajudar os professores e coordenadores nessa tarefa? Pois é, eu disse que não era fácil. Mas é possível.

As outras opções já são até conhecidas. Aliás, uma armadilha é pensarmos que o sharenting é diferente de outras práticas!! Como se fosse algo novo. Ainda bem que comecei dizendo que não era. Ou seja, temos aí o Estatuto da Criança e do Adolescente, o ECA, que prevê a proteção dos jovens, inclusive de seus pais. Não sou jurista, mas acho que deve ter muito gancho. Daí, também os conselhos tutelares precisam ser treinados, primeiro a perderem o medo de encarar as redes sociais, acreditando que são alienígenas da vida social e, segundo, começarem a colocar a temática em pauta.

Mesmo porque a legislação regular também ajuda. O exemplo de direção de automóveis nos mostra que só depois de 18 anos o jovem adquire capacidade de dirigir um veículo, dado o perigo que tal equipamento oferece – e não tem pai ou mãe que possa mudar essa regra! Alguém tem dúvida que as redes sociais são também perigosas? Aliás, não é à toa que os meios de comunicação são chamados de veículos. Portanto, pode-se usar a mesma lógica.

E, por fim, a monetização. Ora, essa então ainda mais fácil. Se temos legislação que proíbe propaganda para crianças, se temos limites do que as redes sociais podem ou não fazer em outras áreas, com até a ridícula aparição de mamilos, bem que podemos pressionar sobre o sharenting. O tal perfil está ganhando dinheiro com imagens de menores? Para de monetizar, uai! Se conseguem barrar mamilos, acho que é possível.

Por último, e talvez a mais importante e eficaz: chamar os jovens para conversar. Gostaria de ter alguém deles, ou vários, participando desse debate. Meu filho, de 14 anos, quando comentei sobre o que ia escrever, me disse sobre a importância… “sei de muitos casos tristes!”

Ops! Estarei eu fazendo sharenting? Certo que não: a exposição é fruto de um momento de conhecimento de ambos, há uma função social importante e a intenção não é conseguir financiamento para roupas de marca. Importante mesmo é manter o debate acesso.

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