70 Anos de TV Brasileira: Outras Telas - Episódio #4 TVs da Floresta

TV Rosário em Rosário Oeste (MT) é TV raiz! Foto: Elvira Lobato (2017)

Só no Brasil é que nos damos o luxo de ter TVs no estilo velho oeste: onde a regra é o fora-da-lei, onde os bravos e espertos mandam e onde a aventura é a marca do empreendedorismo. E o que deveria ser uma exceção nada mais é do que o aplicado em 59% do território nacional: são as televisões que estão dentro da Amazônia Legal e que funcionam com regras muito distintas daquelas emissoras tradicionais. Nos 70 anos da TV brasileira, é mais uma parte da história que é ignorada nos documentários onde predomina apenas a parte glamorosa dessa trajetória. Mas a história marginal da televisão nacional é tão rica quanto as biografias das TVs Tupi, Record, Cultura e Globo... Talvez até mais, pois configura uma diversidade de tipologia que nenhum outro país conta. E, claro, misturar televisão com a Amazônia é só aqui que se faz, ainda mais com o grau de maluquice com que acontece.

Mas essa história, por mim, aqui, é muito mais fácil de ser contada. Porque que já o fez, com muito mais competência: a jornalista Elvira Lobato, conhecida profissional que cobriu para a Folha de S. Paulo, por 19 anos, a radiodifusão e as telecomunicações brasileiras, fez uma espécie de road book ao percorrer esse continente desconhecido da televisão aberta. Escreveu o delicioso Antenas da Floresta: a saga das TVs da Amazônia (Objetiva, 2017), que descobre aquele universo e nos conta o que há naquelas matas.

O livro é mesmo uma viagem, em todos os sentidos. Entre cidades e povoados, Elvira saiu caçando as emissoras na estabelecida Amazônia Legal, aquela área no Brasil com dezenas de municípios em nove estados, 5 milhões de quilômetros quadrados e 59% do nosso território. Acontece que, justificado pelo isolamento dessa região, há uma brecha na legislação, quase um buraco negro devido ao tamanho de permissividade. Assim, a lei (ou a lei que estabelece a exceção da lei - coisas brasileiras...), dá ampla liberdade para colocar programação local onde, em outros lugares, só se poderia retransmitir os sinais das grandes geradoras. No artigo anterior, vimos como essa brecha não é algo inédito, já que foram dadas às emissoras educativas. Mas eram deixas muito insignificantes, com apenas 15% de programação local permitida, orbigatoriamente serem emissoras educativas e, mesmo com uma precária fiscalização, ainda assim existente. Pois na Amazônia Legal, o velho-oeste era a regra: tem um transmissor? Ah, coloca aí o que você quiser, repete a programação das grandes emissoras a sua escolha, corta essa mesma programação onde lhe for mais conveniente e coloque seus programas com a duração que lhe apetecer, comercialize como achar melhor... e tens uma TV (ou mais de uma) em um dos mais de 750 municípios da região! Nessa terra sem lei, a TV local se assemelha ao Saloon, principal local de entretenimento da cidade.

Tá pensando que é brincadeira? Pois segundo a pesquisadora, entre as inúmeras miniemissoras, em 2016 havia mais de 1700 proprietários de canais de retransmissão de TV nessa região! Que, como dito, podem gerar programação local própria sem qualquer entrave de horário, tamanho, qualidade técnica, comercialização. É ou não é uma TV brasileira que desconhecemos?

Nada melhor do que acompanhar a viagem que acontece nos relatos da Elvira nas visitas a essas, muitas vezes, nano TVs. Emissoras onde a precariedade parece ser a motivação, e não o empecilho. Quem já trabalhou em televisão no interior, que reflete, ainda, os primórdios da televisão brasileira, tem a piada interna que, com uma fita crepe e um arame, se resolve qualquer problema na TV. E também sabe o que é um estúdio improvisado, feito em um cômodo de uma casa ou garagem, tendo embalagem de ovos como revestimento acústico, e uma força tarefa de dois ou três tocando uma emissora inteira. Pois bem, essa verdadeira 'tv raiz brasileira' é a regra nas TVs naquela região. Elvira conta casos divertidos e angustiantes, corajosos e, muitas vezes, fora da lei até da lei que já é bastante permissiva: a falta de fiscalização, em todos os aspectos, é que dá um ar de velho oeste às aventuras dos produtores de TV na Amazônia. Mas, me parece, que são essas aventuras que caracterizam um jeito de fazer televisão que é mais próximo da criatividade, empenho e dedicação do brasileiro, mas também sua vocação pela desobediência civil, desprezo pelo caráter de serviço social da sua concessão pública e um oportunismo editorial que flui de acordo com interesses político-partidários e comercial do momento daquela localidade. 

Veja que a lei fora da lei da Amazônia Legal tinha a boa intenção de desburocratizar a comunicação em uma região isolada, e fazer com que a TV local servisse como um instrumento verdadeiro de comunicação social, diminuindo a influência das emissoras completamente fora de sua realidade, e oferecendo mais oportunidades para as populações locais de se conhecerem a si próprias, e se colocarem em comum (origem da palavra comunicar) pelos veículo mais popular. Mas, como corretamente diz o dito popular, de boas intenções o inferno está cheio...

Mas nada é preto e branco na televisão brasileira. Há, de fato, algumas nuances nessa 'tv raiz'. Da precariedade surge a criatividade; das demandas locais aparecem propostas que aproximam muito mais o telespectador da emissora do que o tradicional consumidor do anunciante; da vontade de fazer, independente das condições adversas, se veem as mudanças de paradigmas estéticos e operacionais de uma produção televisiva que, como sabemos, foram pautados por emissoras a anos-luz de distância da grande maioria das TVs, nos quesitos econômicos e sociopolíticos. Assim, muito daqueles que produzem televisão fora da história clássica dos 70 anos - lembrados nessa série - consegue se identificar e ter um sentimento de que não está sozinho. Ao contrário, ao que parece, temos uma quantidade de companheiros incomensurável espalhados por aí, principalmente na maior parte do nosso território.

Há, no entanto, uma importante distinção: se a produção, a vontade e as condições adversas aproximam de outras emissoras, como as comunitárias - vistas anteriormente - universitárias, legislativas, educativas - que veremos nas próximas semanas -, o conteúdo e a postura política são completamente diferentes. Essas emissoras são tocadas, em geral, por empresários locais bastante comprometidos com a política partidária local, e seus conceitos éticos são um tanto elásticos. Ao não ter um estado presente, regulador e fiscalizador, colocam no ar o que mais apetece, tanto para atender as demandas políticas partidárias, como para aumentar a audiência em busca de anunciantes. Daí, os programas mais comuns serem do tipo jornalístico/policial/denunciativo/escandaloso, junto com os religiosos, que tanto preenchem as grades das emissoras tradicionais comerciais. Só que, por tratar de coisas locais, o impacto, e a interatividade com o telespectador, são muito maiores. Neste sentido, as demais emissoras fora da Amazônia Legal contam com várias entidades como regulador e fiscalizador, bem diferente onde o Xerife é chegado ao dono do Saloon, quando não o próprio.

De qualquer maneira, o livro reforça sobre a força da emissora local, focada, e como a vontade pode suplantar as carências. Ou seja, a cara das TVs do interior brasileiras, aquelas que não pertencem as grandes redes. Essa receita mostra que os produtos resultantes delas podem ser completamente diferentes - do interesse político-partidário ao interesse público -, mas a aventura do fazer dá o alento de que o modo escolhido (ou imposto pelo contexto) pode ser gratificante, mesmo que nos levando a caminhos diferentes. A leitura da 'saga das TVs da Amazônia' pode até não ser a que ilustra a própria saga das TVs de interesse social brasileiras quanto os seus objetivos éticos e de conteúdo, mas nos mostra que os movem é um espírito quixotesco de produzir televisão, o mesmo que nos diz que é sempre bom manter uma fita crepe e um arame na gaveta.

Essa é uma das histórias que os 70 anos não estão contando!
Assim, a obra da jornalista Elvira Lobato é obrigatória para a) quem gosta de televisão, b) quem sabe que produzir televisão no Brasil está muito longe do modelo global platinado, c) que tem consciência que o país é muito mais complexo do que aquele mostrado nas grandes redes nacionais, principalmente fora das capitais, d) que acredita, pela experiência, que a TV local tem uma força  não medida e nem qualificada nas pesquisas de audiência, mas que é expressiva e empolgante, e, e) gosta de um road movie, aqueles filmes em que a história se desenvolve durante uma viagem.

(essa coluna utilizou de partes da resenha Onde a TV Local e o Brasil se Encontram, do mesmo autor, realizada para a Revista ABTU TV Universitária + TV Pública, no. 6, 2019)

No próximo episódio....  

A televisão mais democrática do Brasil é a televisão feita... pelos políticos! O surgimento das TVs legislativas eleva, sem que a maioria da audiência perceba, a democracia brasileira para um patamar antes desconhecido. Mudaram como passamos a ver os políticos, como eles passaram a se ver, e como a televisão, em geral, os mostravam. E isso tudo em um equilíbrio que nenhuma outra emissora brasileira conseguiu ao longo dos 70 anos.

Próximo segunda, dia 19, nesse mesmo blogcanal!

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