Marco Civil da Internet: Ordem no ambiente virtual
Lúcio é advogado e mestrando em gestão social, educação e desenvolvimento local no Centro Universitário UNA |
É um ótimo resumo das questões do Marco Civil da Internet e entrevista o meu orientando Lúcio Marcos do Bom Conselho.
Por Bárbara Caldeira - Vox Objetiva
A internet é terra de ninguém’. Se essa
afirmativa fazia sentido, desde o dia 23 de junho ela precisa ser
revista. É que entrou em vigor o Marco Civil da Internet. O documento é
como se fosse uma Constituição para o uso da rede no Brasil. A Lei nº
12.965/14 foi discutida por quase três anos no Congresso Nacional e
sancionada em abril deste ano por Dilma Rousseff. A presidente manteve
os termos redigidos pelo Senado. Aguardado com ansiedade por usuários
brasileiros da web, o Marco Civil da Internet institui princípios,
garantias, direitos e deveres para internautas e empresas. Até mesmo
figuras famosas, como o cantor e ex-ministro da Cultura, Gilberto Gil, o
humorista Gregório Duvivier e o ator Wagner Moura, apoiaram e
defenderam publicamente a aprovação da lei.
Para o professor de Direito Digital da
Faculdade Cotemig, Lúcio Marcos do Bom Conselho, o estabelecimento das
normas é um grande avanço. “A regulamentação do ambiente virtual se
fazia necessária havia muito tempo. Por ausência de regras específicas, a
lógica do mundo real era trazida para o digital”, argumenta. A opinião é
partilhada com cautela pelo vice-presidente executivo da Sociedade de
Usuários de Informática e Telecomunicações de Minas Gerais (Sucesu
Minas) e conselheiro do programa Minas Gerais de Tecnologia da
Informação (MGTI), Leonardo Bortoletto. “Estamos diante de uma novidade
para a cultura da internet. Isso nos ajuda a consolidar o limite entre
nossos direitos e deveres ao compartilhar alguma informação. Precisamos
de um tempo para ver se tudo vai funcionar na prática. Ainda existem
pontos divergentes que podem ser ajustados e melhorados”.
A neutralidade de rede é
um dos pilares do Marco Civil da Internet. O princípio obriga os
provedores de conexão a tratar igualmente toda informação que trafega no
meio virtual. O marco proíbe diferenciações por tipo, origem ou destino
dos pacotes de dados. Antes da instauração da lei, a neutralidade de
rede era prevista em documento da Agência Nacional de Telecomunicações
(Anatel). Mas as reclamações dos usuários em relação à queda da
velocidade de conexão após o uso de serviços pesados – traffic shaping –
eram constantes. Com a regulamentação, donos da infraestrutura da rede
ficam impedidos de privilegiar alguns serviços, seus ou de terceiros,
com os quais poderiam lucrar. A neutralidade vem tornar a concorrência
desse mercado mais leal. O princípio assegura uma dinâmica em que novos
produtos possam competir com gigantes digitais estabelecidos no mercado.
Mas o tema é polêmico, assim como outros
previstos pela nova legislação. Há quem pense que a garantia da
neutralidade de rede possa prejudicar os usuários por restringir a
personalização de planos de assinatura e tornar mais caro o acesso à
internet. “As empresas de telefonia podem continuar oferecendo
diferentes velocidades. Mas a venda dos serviços não pode prejudicar o
tráfego normal dos dados. Isso faz com que a aplicação do princípio não
implique encarecer o serviço, mas assegurar um acesso de qualidade para
todos”, esclarece Bortoletto.
Lúcio Marcos espera que o próprio
mercado observe a concorrência e defina os preços de serviços de conexão
à internet. O formato é o mesmo que ocorreu com a telefonia móvel. “A
neutralidade de rede traz um grande ganho aos usuários. É provável que
as empresas provedoras acabem nivelando os valores dos serviços na busca
pela fidelidade do cliente”, defende.
O zelo pela privacidade,
tão caro ao cidadão no dia a dia, também se tornou um desejo no mundo
virtual. A ausência da obrigatoriedade de sigilo das informações que
circulam na rede sempre assombrou os usuários. O calcanhar de aquiles da
internet ficou claro no episódio que envolveu o ex-técnico da Agência
Central de Inteligência (CIA) Edward Snowden. O especialista confirmou
que os Estados Unidos estão de olho nas comunicações eletrônicas e em
outras informações de usuários da rede mundial de computadores em todo o
mundo. Nem mesmo a presidente Dilma Rousseff foi excluída do sistema de
vigilância global da Agência Nacional de Segurança (NSA)
norte-americana. Após as declarações de Snowden, Dilma pediu urgência
constitucional para a tramitação do Marco Civil.
“A regulamentação do projeto é
extremamente relevante e coerente para a manutenção das garantias
constitucionais dos usuários brasileiros. E a privacidade tem grande
importância no texto”, afirma Bortoletto. Para o executivo, o princípio
da finalidade resguarda ainda mais o internauta porque garante que as
empresas só vão poder utilizar os dados para os fins pelos quais eles
foram coletados. A lei assegura a inviolabilidade e o sigilo do fluxo de
comunicações feitas e armazenadas pela internet. Dessa forma, os
diálogos via Skype ou as mensagens salvas na conta de e-mail só podem
ser acessados mediante ordem judicial. “Também vai ser possível saber em
quais sites um IP navegou e se alguém acessou seu e-mail. Mas o
conteúdo fica resguardado”, elucida Lúcio Marcos.
Além dessas medidas, a lei estabelece
que os provedores de aplicação, como o Google e o facebook, terão de
manter o registro de acesso de todos os usuários por seis meses. Essa
prática era opcional e não tinha um período estabelecido.
Com o Marco Civil, o marketing dirigido
também está com os dias contados. É o fim daquele anúncio que insiste
em aparecer em uma página só porque um produto ou serviço foi consultado
em outra. As novas regras preveem que as empresas de acesso não podem
espiar as informações trocadas pelos usuários na rede. A medida impede a
formação de bases de clientes para marketing dirigido. A notícia é boa
para Thayanna Sena. Mesmo sendo analista de marketing digital e de
mídias sociais, ela se declara incomodada com a prática. “Basta cotar um
produto em um e-commerce para que ele apareça quase instantaneamente
nos anúncios do facebook. Às vezes, o mesmo produto entra em promoção
dias depois e volta a aparecer para mim, quando nem estou mais pensando
nele”, comenta.
Para Thayanna, as propagandas que surgem
nas buscas do Google e em blogs são ignoradas mais facilmente. Mas isso
não acontece no facebook. “Os anúncios aparecem em todo lugar: nas
laterais, nas sugestões de páginas a curtir e até em postagens
patrocinadas. Entendo como isso funciona, mas fico incomodada. Nem
sempre os produtos cotados são pra mim. Nesse caso, mesmo com a invasão
aos meus acessos, o anúncio acaba não atingindo a pessoa desejada”,
argumenta. Ela confessa, porém, que é quase impossível resistir a tanta
insistência. Certa vez, ela pesquisou um modelo de bota em vários sites
de marcas renomadas. Depois de ver o produto inúmeras vezes em suas
navegações, acabou adquirindo um exemplar. “A bota ficava o tempo todo
me perseguindo. Assumo que comprei, mas foi em outro site”, brinca.
Mas a sensação de invasão causada pelo
marketing dirigido não é unânime. O universitário Mateus Meireles vê
constantemente ofertas de roupas, acessórios e livros pipocarem da tela
do computador. “Se for bem administrado, acredito que esse
direcionamento possa ser muito útil. Antes de tudo, os termos devem
estar claros para o usuário. Muita gente reclama, mas nem lê os termos
que aceita ao abrir um perfil em uma rede social”, provoca. O estudante
usa os sites para pesquisar preços de artigos, mas se aborrece com a
falta de coerência do marketing que deveria ser direcionado. “Só fico
incomodado quando, por exemplo, estou escutando uma playlist no youtube e
passa um comercial que não tem nada a ver com o que ouço. Não há
eficácia quando o anúncio de um cantor sertanejo é inserido entre um
vídeo de rock”, reflete.
O gerente de Novos Negócios da Animatto,
Ricardo Mota, acredita que o Marco Civil possa ser visto como positivo
para o setor. O executivo da agência especializada em soluções digitais
também crê que vá haver uma autorregulamentação das dinâmicas capaz de
repensar as táticas de remarketing e a utilização dos cookies e dados do
usuário para entrega de conteúdo e publicidade customizados. “O maior
impacto do Marco Civil tem sido na responsabilidade ao administrar e
divulgar os dados dos usuários. As agências e os setores de marketing
têm redobrado a cautela em relação às ferramentas de segurança da
informação e no manejo das publicidades direcionadas”, pondera. De toda
forma, as agências digitais bem-estruturadas têm essa preocupação há
mais tempo.
O jornalista e especialista em Marketing
Digital Marcelo Paulo faz um balanço do Marco Civil em sua área. “A
norma pode influenciar a perda de informações sobre o comportamento dos
usuários, tão valiosa para a tomada de decisões nas campanhas”,
ressalta. Embora a inteligência digital seja prejudicada, Marcelo Paulo
julga ser importante resguardar a privacidade dos internautas. Nesse
embate, cabe ao mercado se reinventar e suprir a ausência de informações
das ferramentas web analytics. O jornalista defende que se criem iscas
digitais para verificar, por meio de formulários, o que desperta o
interesse dos usuários naquele negócio. As iscas vão desde sorteios até
downloads gratuitos de e-books e conteúdo de cursos e palestras. “Os
dados cedidos nessas ações permitem criar um diálogo personalizado por
e-mail a fim de obter novas informações e oferecer mais dados para que o
usuário decida sobre a aquisição de um produto ou de um serviço. Isso é
o oposto de ser invasivo”, afirma.
As técnicas de aproximação com o público
estão entre as preferidas do empresário Daniel Rodrigues, diretor dos
sites de perfumes importados ‘Na Mordomia’ e da franquia mineira de
turismo ‘Encontre Sua Viagem’. O ‘Na Mordomia’ ficou mais de um ano
vendendo produtos em site de compras coletivas e a preços bem mais
baixos, como explica Daniel. A intenção era formar uma base sólida de
clientes. Agora a divulgação de novidades flui por meio das redes
sociais. “O marketing dirigido é mais efetivo somente com empresas que
consolidaram seus nomes. Descobri isso testando”, conta.
A garantia da liberdade de expressão
e o impedimento da censura são outros temas polêmicos contemplados pelo
Marco Civil. Com a nova legislação, a exclusão de conteúdos da rede –
ofensivos ou não – só pode ser solicitada judicialmente. A norma impede
os provedores de manter ou de retirar do ar informações, notícias ou
imagens polêmicas. “Há a liberdade de expressão, mas é importante usar o
bom senso na hora de compartilhar algum conteúdo”, sugere Bortoletto.
“Cabe frisar que as empresas que receberem ordens judiciais e não
tomarem providências podem ser punidas”, complementa.
Lúcio Marcos faz ressalvas em relação a
esse tópico do Marco Civil. A medida torna a retirada de conteúdo do ar
ainda mais morosa. “A exclusão ficou mais burocrática e bem mais lenta.
Antes, bastava uma notificação ao provedor. Caso não providenciasse a
retirada imediata do conteúdo, ele passaria a ser corresponsável. O
processo era mais rápido e eficiente”, avalia. Como consequência, o
ambiente virtual pode se tornar, a princípio, mais ofensivo, como
observa Lúcio. Mas, se o conteúdo apresentar imagens de nudez ou ato
sexual do ofendido, o provedor deve excluí-lo apenas com a notificação,
sem necessidade de ação judicial. “Essas regras precisam amadurecer. A
sedimentação do Marco Civil vai se consolidar apenas no dia a dia. Em
breve, é possível que novas determinações venham complementar ou
modificar as atuais. O ambiente virtual ainda é muito novo e dinâmico.
Por isso, as reflexões e os debates serão constantes”, projeta.
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