Canal Universitário Nacional: para superar a confusão entre público e estatal
(publicado originalmente no Observatório da Imprensa, de 29/10/2013, edição 770)
A nova lei de acesso condicionado obriga que as operadoras de televisão por assinatura por satélite tenham um canal para a produção universitária, da mesma maneira que a TV a cabo. Na impossibilidade técnica e financeira de cada cidade ter o seu próprio canal universitário no satélite como acontece no cabo, o que as operadoras e as próprias universidades preveem é o surgimento de um canal nacional universitário. Esse artigo tem a finalidade de tentar esclarecer a quanto anda o tal canal e o que está pegando.
Seria esse canal possível? As instituições de ensino superior já se movimentam há algum tempo, e não faltam iniciativas, mas a correlação de forças contrárias é enorme.
A postura do governo
É de impressionar a resistência em uma temática que deveria muito mais caminhar para uma solução rápida e de interesse social relevante. Afinal, quem pode imaginar, inclusive as operadoras (já que não lhes custariam nada), quem não queira um canal nacional, com a finalidade de divulgar o conhecimento, assim como a palpitante vida acadêmica universitária (incluindo a produção cultural, esportiva e social), dentro de um formato de entretenimento, tipo National Geographic, Discovery e History, mas com uma pegada mais brasileira e com a descontração e a criatividade que nos caracterizam? Assinantes teriam mais uma opção sem custo extra, assinantes felizes deixam operadoras felizes, e estar nos milhões de casas pelo Brasil também deixariam as escolas igualmente felizes. Parece que só quem não quer ser feliz é o governo. E como é ele quem manda...
Com não é um assunto palpitante para o mercado audiovisual, o primeiro entrave é a falta de um debate sobre o tema. Agrega-se, ou é fruto de, a notória falta de liderança do governo, tanto pela inexistência de políticas públicas para a comunicação pública como pela incapacidade de resolver suas paranoicas lutas ideológicas internas. Apenas esse último fator, se contornado, faria com que se tomassem medidas operacionais e regulatórias simples e que, rapidamente, poderiam viabilizar o canal. Esse imbróglio transforma o que seria mais uma oferta de conteúdo gratuito e atrativo em um pepino para as operadoras. E, para as instituições de ensino superior (IES), é uma oportunidade que se perde para derrubar o muro que as separam da sociedade, nesta metáfora já paradigmática de fazer conhecimento apenas para o intramuros.
A comunicação pública é desprezada pelo governo federal. Embora tenha começado bem, ao estabelecer uma “cota” para canais públicos na futura TV Digital, e bancado os Fóruns de TVs Públicas em 2007 e 2009, assim como a Conferência Nacional de Comunicação, que abordou uma vez mais a temática, ficou satisfeito com a criação da EBC – Empresa Brasil de Comunicação e, dali para adiante, só andou para trás.
A própria EBC vê seu orçamento minguar a cada ano quando qualquer manual de administração indicaria que, para o desenvolvimento de uma nova empresa, deve-se fazer o inverso. A bela e democrática iniciativa de ampliar a comunicação pública além do Estado, agregando energias com as televisões universitárias, educativas, comunitárias e legislativas (o chamado “campo público de televisão”) virou um “cada um tome conta de sua vida”. Claro, isso depois de terem sido usadas para a aprovação da lei da EBC, incluindo os recursos tirados da iniciativa privada, como o Funttel, Condecine e Fundo Setorial do Audiovisual. Portanto, serviram apenas como massa de manobra e como verniz de participação democrática. Um bom exemplo é o operador de rede, aquele sujeito que iria unir todo o campo público de televisão em prol de uma comunicação local pública, e que está morto.
E apenas estamos tratando daqueles setores do governo que entendem alguma coisa de comunicação pública, como a própria EBC. Porque, pelo resto do governo (à exceção do Ministério da Cultura de Gilberto Gil, e só!), alguém precisa ensinar o que é a Constituição. Ainda não caiu a ficha que, desde 1988, existem três sistemas de comunicação, o comercial, o estatal e o público. Portanto, já passou da hora de parar de confundir público e estatal, da maneira conveniente para quem está no governo. Além de démodé (pois essa é uma mudança de postura mundial), tal confusão – uma vez que se acredita não existir ignorantes no andar de cima da burocracia federal – só dá força para a percepção do emparelhamento do executivo.
Produções compartilhadas
Na distribuição dos canais para a TV Digital, foram criados os canais para a comunicação pública: além do executivo onde ficou a TV Brasil, da EBC, o da educação, da cultura e da cidadania. Como as outorgas são uma concessão federal, definiu-se que os ministérios correspondentes (sendo o da cidadania atribuído ao Ministério das Comunicações) seriam os outorgados. Pronto, bastou para que a intelligentsiadesses ministérios rasgasse a Constituição e voltasse ao tempo, imaginado que a regulamentação – e a luta por trás dela – fosse apenas para dar mais canais de comunicação para o Estado, o seu estado. Será que essa turma, tão ciosa das suas origens acadêmicas, faltou à aula que explicava a diferença entre a gestão social e a gestão do social? E que é essa uma das principais diferenças entre o público e o estatal?
Embora a outorga seja para os ministérios, caberia a eles proporcionar um ambiente de cooperação entre os agentes para o uso compartilhado desses canais, inclusive o próprio Estado, mas certamente não como majoritário. Essa exigência da participação social como gestora não é desconhecida do governo, pois acontece em trocentas outras concessões e outorgas públicas, comissões, conselhos, na área da saúde, educação, transporte, economia, tudo isso que tem sido aplicado graças à mesma Constituição que é ignorada na (inexistente) política pública do governo.
Vale lembrar que tais canais foram previstos para os tais 700 mega-hertz que estão sendo cedidos para que as telefônicas e o próprio governo façam bonito na Copa do Mundo. Mais uma demonstração de descaso com a comunicação pública, piorado com a quebra dos compromissos acordados anteriormente e explícitos em regulamentação ainda vigente.
Esses canais, com a opção de gestão centralizada nos ministérios e não pela participação social e o compartilhamento entre as instituições, seriam apropriados para esse aparelhamento político-partidário se não contassem com um único fator: a incompetência do próprio Estado em gerir tais canais. Após seis anos de TV Digital implantada, os outros três canais não saíram do papel. Mas aqueles que os têm como latifúndio eletrônico juram de pés juntos que ainda vão colocar no ar! Neste grupelho está o Canal da Educação, que, a princípio, teria uma das suas frequências destinada para ser o canal onde as instituições de ensino superior compartilhariam suas produções com a sociedade. E ele se tornou o exemplo clássico do que se imagina ser um canal “público” pelos moldes do executivo.
“O melhor da TV universitária” com o pior do MEC
Em 2007, o então secretário de Educação a Distância do MEC, Carlos Bielschowsky, adorava ir a eventos dizer que o Canal da Educação teria “o melhor da TV universitária brasileira”. Tais declarações são facilmente achadas em documentos oficiais na internet, tal era a sua convicção pela sua ideia genial. Mas também sempre foi claro o que era o seu “melhor da TV universitária brasileira”: programas produzidos pelas universidades federais. Sobrando espaço, de outras universidades públicas alinhadas ao governo. Sobrando, algumas comunitárias igualmente simpáticas. E, quem sabe, vai depender, das demais que estiverem por aí (leia-se IES privadas).
Essa tacanha visão estatista fomenta uma parte significativa do staff do MEC, numerosa o suficiente para empacar o Canal da Educação. É aquele povo para quem as universidades públicas são do bem e as particulares são do mal, essas vendidas para o capitalismo selvagem que corrompem a pureza da educação nacional. Refém da Andifes (a associação das universidades federais), o MEC nunca permitiu o encaminhamento da discussão da ocupação e o desenvolvimento do canal, em especial a frequência para as universidades. Sempre na esperança de que a produção das federais seria suficiente para bancar a programação, também sempre esquece que o mais importante é a gestão deste conteúdo, espalhado pelo país e que denota análise de conteúdo, compartilhamento, gestão social, participação comunitária, logística, empacotamento, distribuição, tudo isso fora do escopo de um ministério. As federais, embora tenham exemplos de ótima qualidade de conteúdo, estão longe da quantidade necessária para um canal 24 horas. O sucateamento e o descaso do próprio MEC com as TVs dessas universidades só pioram a situação. Mas, para os admiradores da Andifes, um dia a gente chega lá...
Não saberia dizer se o mesmo acontece com os demais canais previstos na regulamentação da TV Digital, mas não ficaria nem um pouco surpreso: enquanto não pudermos emparelhar os canais, ninguém pode brincar! Para as universidades é algo ainda mais sério, pois contaminou inclusive o Canal da Cidadania, administrado pelo Ministério das Comunicações. Esse canal deveria ser o ápice da democratização da comunicação, levando para o ar as conquistas da legislação a cabo e que reservou para as organizações locais espaços exclusivos e obrigatórios, como o comunitário e o universitário, todos de uso compartilhado, sem o tacanho governamental. Pois a nova regulamentação do canal para a TV digital não só estatizou novamente o que deveria ser público, neste retrocesso que está virando mania, como eliminou as universidades da lista dos que o podem utilizar! Não há dúvidas do bom lobby exercido de um ministério ao outro e, portanto, o recado está dado: os canais universitários devem ficar aprisionados no cabo e, se quiserem ir ao ar, bem, esperem uma benesse do MEC dentro do seu fictício Canal da Educação.
Apenas para medir a falta de noção desses enquadramentos governamentais: antes da lei do cabo, apenas algumas instituições de ensino se aventuravam em fazer televisão, em torno de duas dezenas. Após o surgimento dos canais universitários, em levantamento de 2011, havia mais de 150, em todas as regiões do país. Dentre as emissoras do campo público, na ocasião, era a maior quantidade de geradoras de conteúdo. E isso fechado no cabo ou na internet, com pouco mais de 20% em sinal aberto. Se o número parece significativo, representava apenas 6% das instituições no país e, portanto, ainda com enorme potencial de crescimento. Uma política pública de comunicação andando ao largo do governo, via legislação progressista e construída socialmente. Mas devidamente abortada de sua evolução para o sinal aberto por se mostrar longe de controle ideológico governamental.
Compartilhamento e identidade como vocação
Posto a âncora que tem sido o governo para a questão de um canal universitário nacional de verdade (e não um festival de ciências das suas universidades), resta saber se há algo a fazer.
Esse era um assunto um tanto esquecido pelas universidades que produzem televisão, dado os constantes nãos do governo quando procurados neste sentido. Na realidade, elas pararam de colocar o governo na fórmula, uma vez que os sinais mais que explícitos do seu desprezo para o segmento, como na questão dos canais da educação e da cidadania e na contribuição da Ancine para essa exclusão, ao não reconhecer as universidades como produtora de conteúdo, insistindo em encaixá-las apenas como exibidoras (e essa é outra história).
O único ponto de contato continuou sendo a EBC, empresa que as universitárias ajudaram a criar e fomentar. O plano é consolidar a RITU, a rede de intercâmbio de televisão universitária via internet, sistema inicialmente criado em conjunto com a RNP – Rede Nacional de Ensino e Pesquisa e depois descontinuado para as universidades, mas levado para outras instâncias do governo, deixando as IES a verem navios ainda na versão 1.0. A ABTU – a associação das instituições de ensino que produzem televisão (a saber, com 20 % de afiliadas públicas) investiu em sistemas de distribuição próprios e privados. O Projeto Perfil, feito com a EBC, catalogou 250 programas pelo país e a RITU, remodelada em 2013, conta já com uma grande troca de conteúdos entre seus afiliados e um banco de conteúdo com 150 horas, e previsão de 600 em 2014.
Com a lei de acesso condicionado, e a obrigação do carregamento de um canal nacional, a RITU se tornou um ponto de partida para uma grade nacional por resolver a questão mais problemática entre as TVs universitárias: a troca de conteúdo de maneira rápida, barata e com menor trabalho operacional. Ninguém tem mais gente, equipamento, tempo e dinheiro para copiar fitas e DVDs para mandar... pelo correio! Compartilhamento de conteúdo está no DNA das TVs universitárias que, desde sempre, trocam programas e exibem em suas grades as produções das colegas, independente da gestão pública ou privada e se são concorrentes por alunos, haja vista, inclusive, a Rede Prosa, entre as TVs universitárias do Rio Grande do Sul. Afinal, o que importa é qualificar uma grade com conteúdos voltados para o conhecimento e para as questões sociais. Ao qualificar a programação e atrair para os canais universitários a audiência, todos saem ganhando, não importando a origem de quem produz.
Mas ainda faltariam muitas coisas: como empacotar, incentivar o envio de mais produções, como fazer a curadoria dos conteúdos, como subir o sinal, como ser recebido pelas operadoras. Neste sentido, a ABTU calcula que precisaria de aproximadamente 200 mil para iniciar o canal e entre 20 e 60 mil para a manutenção mensal, dependendo do modelo a ser definido, com ou sem produção de jornalismo e de uma equipe de controle-mestre, coordenação de programação e tráfego, além de 700 horas de programação anual. Não seriam os um milhão e meio de reais iniciais do Zoom, o canal universitário nacional da Colômbia, e que tem servido como referência às universidades brasileiras. Aliás, esses recursos vieram do governo que, lá, acreditou que as próprias universidades poderiam desenvolver e gerir o canal, afastando essa obrigação de suas mãos burocráticas paralisantes.
Aliás, o Zoom é um modelo a ser mesmo estudado, agrega mais de 40 IES do país e se tornou autossustentável depois de quatro anos, com ajuda da veiculação de publicidade e com recursos das próprias escolas. Afinal, ao governo coube o início, como deve ser, passando, assim que amadurecido o projeto, para àqueles que têm o seu principal interesse. Lá não se esquece de que, mesmo com a preocupação do canal nacional, as TVs universitárias locais continuam ativas e com sua independência, abastecendo de conteúdos, inspiração e visões diferenciadas, tanto a audiência local como, quando formatado adequadamente, para a audiência nacional.
Esse é outro gene no DNA da TV universitária, a sua vocação local, isso que o Ministério das Comunicações e o seu Canal da Cidadania não enxergam. Que o que faz o diferencial de um canal público, e em especial as TVs universitárias, é a sua diversidade cultural, regional, de falas, de temáticas e abordagens próprias de cada comunidade envolvida com a escola. Para usar apenas um exemplo, uma temática sobre economia, como a inflação, enquanto as TVs comerciais usam os mesmos entrevistados, dentro de uma única universidade há diversos pontos de vista diferentes, conflitantes e complementares. Imaginemos uma grade repleta desses diferentes enfoques.
Outra boa lição do Zoom é que ele não entra neste esquema de coitadinho para quem deram um playground para brincar de TV. Não se encara como uma espécie de espaço a ser preenchido de qualquer jeito, mas sim como um canal que vai disputar o nicho de audiência que procura uma programação qualificada pela busca do conhecimento e de diferentes visões de mundo, como National Geografic, Discovery Channel e History. Portanto, a competição não é entre as IES, mas uma força tarefa para colocar uma alternativa com cor e voz locais nesse segmento, lembrando que, quanto mais globais ficamos, mais necessidades temos de retornar às nossas raízes. Pode parecer pretensioso, mas a energia de pensar grande é a mesma de pensar pequeno.
Então, esse deve ser o caminho para o Canal Universitário Nacional. Em primeiro lugar, buscar viabilizar financeiramente a estrutura inicial de recebimento de conteúdo, empacotamento e tráfego do sinal. A questão do conteúdo inicial já é uma questão resolvida: há canais universitários brasileiros que já operam em 24 horas e que poderiam, neste princípio, fornecer a primeira grade de programação, agregada com os conteúdos da RITU e empacotada com identidade visual própria. Dentro do custo inicial, a viabilização do enlace entre o controle-mestre do canal (que, uma vez mais, pode ser em um canal já estabelecido) e as operadoras, restando, antes, a negociação com cada uma delas. Em seguida, qualificar sua programação para disputar a audiência. A ABTU tem caminhado para cumprir essas etapas, o que tem feito com relativo sucesso, mas na velocidade própria de quem não tem recursos suficientes para arrancar.
Onde, o governo?
A sustentabilidade do canal é uma preocupação, mas também inspirado no modelo colombiano, o autossustentação parece ser possível. Não apenas o já batido e muitas vezes infrutífero discurso dos apoios culturais e patrocínios. Para esse, a qualificação da programação é peça fundamental, mas não tem ajudado muito os atuais canais “concorrentes”. Portanto, devem-se buscar alternativas como a ainda pouco explorada – mas em grande fase de expansão – educação a distância (EaD). O canal universitário nacional poderia ser uma rentável janela de exibição nacional para as instituições. Os grandes recursos que as IES investem neste segmento (que têm dado significativo lucro, institucional e financeiro) teriam uma pequena parte investida no canal nacional, tendo como retorno visibilidade e conteúdo para os seus respectivos projetos de emancipação, via EaD, por todo o país.
E nem estamos levando em conta, dentro da proposta de sustentabilidade do canal, a obrigatoriedade dessas mesmas instituições de tornarem públicas suas atividades acadêmicas e de pesquisa. Tais atividades são em parte considerável bancadas com recursos públicos, diretos, como no caso das instituições públicas, e indiretos, através dos benefícios fiscais às privadas. A divulgação científica é uma obrigação das IES, como parte do retorno que devem dar à sociedade e, convenhamos, ter sua produção exibida em uma televisão, local ou nacional, tem mais impacto e visibilidade do que em uma obscura revista científica enterrada em uma biblioteca. Ok, sabemos que são veículos diferentes, com finalidades diferentes, mas supervalorizar as publicações acadêmicas em detrimento a TV é perpetuar o paradigma do conhecimento intramuros. Portanto, não é uma questão de eliminar uma em relação à outra, mas de valorizar a produção de divulgação científica via TV como também um processo de valorização da IES que a produz, dando pontos nas inúmeras avaliações normativas. Tal iniciativa impulsionaria as escolas para a manutenção dos canais universitários, tanto locais como o nacional.
Ops, mas aí precisaria do governo. E aí, já viu, né?
A nova lei de acesso condicionado obriga que as operadoras de televisão por assinatura por satélite tenham um canal para a produção universitária, da mesma maneira que a TV a cabo. Na impossibilidade técnica e financeira de cada cidade ter o seu próprio canal universitário no satélite como acontece no cabo, o que as operadoras e as próprias universidades preveem é o surgimento de um canal nacional universitário. Esse artigo tem a finalidade de tentar esclarecer a quanto anda o tal canal e o que está pegando.
Seria esse canal possível? As instituições de ensino superior já se movimentam há algum tempo, e não faltam iniciativas, mas a correlação de forças contrárias é enorme.
A postura do governo
É de impressionar a resistência em uma temática que deveria muito mais caminhar para uma solução rápida e de interesse social relevante. Afinal, quem pode imaginar, inclusive as operadoras (já que não lhes custariam nada), quem não queira um canal nacional, com a finalidade de divulgar o conhecimento, assim como a palpitante vida acadêmica universitária (incluindo a produção cultural, esportiva e social), dentro de um formato de entretenimento, tipo National Geographic, Discovery e History, mas com uma pegada mais brasileira e com a descontração e a criatividade que nos caracterizam? Assinantes teriam mais uma opção sem custo extra, assinantes felizes deixam operadoras felizes, e estar nos milhões de casas pelo Brasil também deixariam as escolas igualmente felizes. Parece que só quem não quer ser feliz é o governo. E como é ele quem manda...
Com não é um assunto palpitante para o mercado audiovisual, o primeiro entrave é a falta de um debate sobre o tema. Agrega-se, ou é fruto de, a notória falta de liderança do governo, tanto pela inexistência de políticas públicas para a comunicação pública como pela incapacidade de resolver suas paranoicas lutas ideológicas internas. Apenas esse último fator, se contornado, faria com que se tomassem medidas operacionais e regulatórias simples e que, rapidamente, poderiam viabilizar o canal. Esse imbróglio transforma o que seria mais uma oferta de conteúdo gratuito e atrativo em um pepino para as operadoras. E, para as instituições de ensino superior (IES), é uma oportunidade que se perde para derrubar o muro que as separam da sociedade, nesta metáfora já paradigmática de fazer conhecimento apenas para o intramuros.
A comunicação pública é desprezada pelo governo federal. Embora tenha começado bem, ao estabelecer uma “cota” para canais públicos na futura TV Digital, e bancado os Fóruns de TVs Públicas em 2007 e 2009, assim como a Conferência Nacional de Comunicação, que abordou uma vez mais a temática, ficou satisfeito com a criação da EBC – Empresa Brasil de Comunicação e, dali para adiante, só andou para trás.
A própria EBC vê seu orçamento minguar a cada ano quando qualquer manual de administração indicaria que, para o desenvolvimento de uma nova empresa, deve-se fazer o inverso. A bela e democrática iniciativa de ampliar a comunicação pública além do Estado, agregando energias com as televisões universitárias, educativas, comunitárias e legislativas (o chamado “campo público de televisão”) virou um “cada um tome conta de sua vida”. Claro, isso depois de terem sido usadas para a aprovação da lei da EBC, incluindo os recursos tirados da iniciativa privada, como o Funttel, Condecine e Fundo Setorial do Audiovisual. Portanto, serviram apenas como massa de manobra e como verniz de participação democrática. Um bom exemplo é o operador de rede, aquele sujeito que iria unir todo o campo público de televisão em prol de uma comunicação local pública, e que está morto.
E apenas estamos tratando daqueles setores do governo que entendem alguma coisa de comunicação pública, como a própria EBC. Porque, pelo resto do governo (à exceção do Ministério da Cultura de Gilberto Gil, e só!), alguém precisa ensinar o que é a Constituição. Ainda não caiu a ficha que, desde 1988, existem três sistemas de comunicação, o comercial, o estatal e o público. Portanto, já passou da hora de parar de confundir público e estatal, da maneira conveniente para quem está no governo. Além de démodé (pois essa é uma mudança de postura mundial), tal confusão – uma vez que se acredita não existir ignorantes no andar de cima da burocracia federal – só dá força para a percepção do emparelhamento do executivo.
Produções compartilhadas
Na distribuição dos canais para a TV Digital, foram criados os canais para a comunicação pública: além do executivo onde ficou a TV Brasil, da EBC, o da educação, da cultura e da cidadania. Como as outorgas são uma concessão federal, definiu-se que os ministérios correspondentes (sendo o da cidadania atribuído ao Ministério das Comunicações) seriam os outorgados. Pronto, bastou para que a intelligentsiadesses ministérios rasgasse a Constituição e voltasse ao tempo, imaginado que a regulamentação – e a luta por trás dela – fosse apenas para dar mais canais de comunicação para o Estado, o seu estado. Será que essa turma, tão ciosa das suas origens acadêmicas, faltou à aula que explicava a diferença entre a gestão social e a gestão do social? E que é essa uma das principais diferenças entre o público e o estatal?
Embora a outorga seja para os ministérios, caberia a eles proporcionar um ambiente de cooperação entre os agentes para o uso compartilhado desses canais, inclusive o próprio Estado, mas certamente não como majoritário. Essa exigência da participação social como gestora não é desconhecida do governo, pois acontece em trocentas outras concessões e outorgas públicas, comissões, conselhos, na área da saúde, educação, transporte, economia, tudo isso que tem sido aplicado graças à mesma Constituição que é ignorada na (inexistente) política pública do governo.
Vale lembrar que tais canais foram previstos para os tais 700 mega-hertz que estão sendo cedidos para que as telefônicas e o próprio governo façam bonito na Copa do Mundo. Mais uma demonstração de descaso com a comunicação pública, piorado com a quebra dos compromissos acordados anteriormente e explícitos em regulamentação ainda vigente.
Esses canais, com a opção de gestão centralizada nos ministérios e não pela participação social e o compartilhamento entre as instituições, seriam apropriados para esse aparelhamento político-partidário se não contassem com um único fator: a incompetência do próprio Estado em gerir tais canais. Após seis anos de TV Digital implantada, os outros três canais não saíram do papel. Mas aqueles que os têm como latifúndio eletrônico juram de pés juntos que ainda vão colocar no ar! Neste grupelho está o Canal da Educação, que, a princípio, teria uma das suas frequências destinada para ser o canal onde as instituições de ensino superior compartilhariam suas produções com a sociedade. E ele se tornou o exemplo clássico do que se imagina ser um canal “público” pelos moldes do executivo.
“O melhor da TV universitária” com o pior do MEC
Em 2007, o então secretário de Educação a Distância do MEC, Carlos Bielschowsky, adorava ir a eventos dizer que o Canal da Educação teria “o melhor da TV universitária brasileira”. Tais declarações são facilmente achadas em documentos oficiais na internet, tal era a sua convicção pela sua ideia genial. Mas também sempre foi claro o que era o seu “melhor da TV universitária brasileira”: programas produzidos pelas universidades federais. Sobrando espaço, de outras universidades públicas alinhadas ao governo. Sobrando, algumas comunitárias igualmente simpáticas. E, quem sabe, vai depender, das demais que estiverem por aí (leia-se IES privadas).
Essa tacanha visão estatista fomenta uma parte significativa do staff do MEC, numerosa o suficiente para empacar o Canal da Educação. É aquele povo para quem as universidades públicas são do bem e as particulares são do mal, essas vendidas para o capitalismo selvagem que corrompem a pureza da educação nacional. Refém da Andifes (a associação das universidades federais), o MEC nunca permitiu o encaminhamento da discussão da ocupação e o desenvolvimento do canal, em especial a frequência para as universidades. Sempre na esperança de que a produção das federais seria suficiente para bancar a programação, também sempre esquece que o mais importante é a gestão deste conteúdo, espalhado pelo país e que denota análise de conteúdo, compartilhamento, gestão social, participação comunitária, logística, empacotamento, distribuição, tudo isso fora do escopo de um ministério. As federais, embora tenham exemplos de ótima qualidade de conteúdo, estão longe da quantidade necessária para um canal 24 horas. O sucateamento e o descaso do próprio MEC com as TVs dessas universidades só pioram a situação. Mas, para os admiradores da Andifes, um dia a gente chega lá...
Não saberia dizer se o mesmo acontece com os demais canais previstos na regulamentação da TV Digital, mas não ficaria nem um pouco surpreso: enquanto não pudermos emparelhar os canais, ninguém pode brincar! Para as universidades é algo ainda mais sério, pois contaminou inclusive o Canal da Cidadania, administrado pelo Ministério das Comunicações. Esse canal deveria ser o ápice da democratização da comunicação, levando para o ar as conquistas da legislação a cabo e que reservou para as organizações locais espaços exclusivos e obrigatórios, como o comunitário e o universitário, todos de uso compartilhado, sem o tacanho governamental. Pois a nova regulamentação do canal para a TV digital não só estatizou novamente o que deveria ser público, neste retrocesso que está virando mania, como eliminou as universidades da lista dos que o podem utilizar! Não há dúvidas do bom lobby exercido de um ministério ao outro e, portanto, o recado está dado: os canais universitários devem ficar aprisionados no cabo e, se quiserem ir ao ar, bem, esperem uma benesse do MEC dentro do seu fictício Canal da Educação.
Apenas para medir a falta de noção desses enquadramentos governamentais: antes da lei do cabo, apenas algumas instituições de ensino se aventuravam em fazer televisão, em torno de duas dezenas. Após o surgimento dos canais universitários, em levantamento de 2011, havia mais de 150, em todas as regiões do país. Dentre as emissoras do campo público, na ocasião, era a maior quantidade de geradoras de conteúdo. E isso fechado no cabo ou na internet, com pouco mais de 20% em sinal aberto. Se o número parece significativo, representava apenas 6% das instituições no país e, portanto, ainda com enorme potencial de crescimento. Uma política pública de comunicação andando ao largo do governo, via legislação progressista e construída socialmente. Mas devidamente abortada de sua evolução para o sinal aberto por se mostrar longe de controle ideológico governamental.
Compartilhamento e identidade como vocação
Posto a âncora que tem sido o governo para a questão de um canal universitário nacional de verdade (e não um festival de ciências das suas universidades), resta saber se há algo a fazer.
Esse era um assunto um tanto esquecido pelas universidades que produzem televisão, dado os constantes nãos do governo quando procurados neste sentido. Na realidade, elas pararam de colocar o governo na fórmula, uma vez que os sinais mais que explícitos do seu desprezo para o segmento, como na questão dos canais da educação e da cidadania e na contribuição da Ancine para essa exclusão, ao não reconhecer as universidades como produtora de conteúdo, insistindo em encaixá-las apenas como exibidoras (e essa é outra história).
O único ponto de contato continuou sendo a EBC, empresa que as universitárias ajudaram a criar e fomentar. O plano é consolidar a RITU, a rede de intercâmbio de televisão universitária via internet, sistema inicialmente criado em conjunto com a RNP – Rede Nacional de Ensino e Pesquisa e depois descontinuado para as universidades, mas levado para outras instâncias do governo, deixando as IES a verem navios ainda na versão 1.0. A ABTU – a associação das instituições de ensino que produzem televisão (a saber, com 20 % de afiliadas públicas) investiu em sistemas de distribuição próprios e privados. O Projeto Perfil, feito com a EBC, catalogou 250 programas pelo país e a RITU, remodelada em 2013, conta já com uma grande troca de conteúdos entre seus afiliados e um banco de conteúdo com 150 horas, e previsão de 600 em 2014.
Com a lei de acesso condicionado, e a obrigação do carregamento de um canal nacional, a RITU se tornou um ponto de partida para uma grade nacional por resolver a questão mais problemática entre as TVs universitárias: a troca de conteúdo de maneira rápida, barata e com menor trabalho operacional. Ninguém tem mais gente, equipamento, tempo e dinheiro para copiar fitas e DVDs para mandar... pelo correio! Compartilhamento de conteúdo está no DNA das TVs universitárias que, desde sempre, trocam programas e exibem em suas grades as produções das colegas, independente da gestão pública ou privada e se são concorrentes por alunos, haja vista, inclusive, a Rede Prosa, entre as TVs universitárias do Rio Grande do Sul. Afinal, o que importa é qualificar uma grade com conteúdos voltados para o conhecimento e para as questões sociais. Ao qualificar a programação e atrair para os canais universitários a audiência, todos saem ganhando, não importando a origem de quem produz.
Mas ainda faltariam muitas coisas: como empacotar, incentivar o envio de mais produções, como fazer a curadoria dos conteúdos, como subir o sinal, como ser recebido pelas operadoras. Neste sentido, a ABTU calcula que precisaria de aproximadamente 200 mil para iniciar o canal e entre 20 e 60 mil para a manutenção mensal, dependendo do modelo a ser definido, com ou sem produção de jornalismo e de uma equipe de controle-mestre, coordenação de programação e tráfego, além de 700 horas de programação anual. Não seriam os um milhão e meio de reais iniciais do Zoom, o canal universitário nacional da Colômbia, e que tem servido como referência às universidades brasileiras. Aliás, esses recursos vieram do governo que, lá, acreditou que as próprias universidades poderiam desenvolver e gerir o canal, afastando essa obrigação de suas mãos burocráticas paralisantes.
Aliás, o Zoom é um modelo a ser mesmo estudado, agrega mais de 40 IES do país e se tornou autossustentável depois de quatro anos, com ajuda da veiculação de publicidade e com recursos das próprias escolas. Afinal, ao governo coube o início, como deve ser, passando, assim que amadurecido o projeto, para àqueles que têm o seu principal interesse. Lá não se esquece de que, mesmo com a preocupação do canal nacional, as TVs universitárias locais continuam ativas e com sua independência, abastecendo de conteúdos, inspiração e visões diferenciadas, tanto a audiência local como, quando formatado adequadamente, para a audiência nacional.
Esse é outro gene no DNA da TV universitária, a sua vocação local, isso que o Ministério das Comunicações e o seu Canal da Cidadania não enxergam. Que o que faz o diferencial de um canal público, e em especial as TVs universitárias, é a sua diversidade cultural, regional, de falas, de temáticas e abordagens próprias de cada comunidade envolvida com a escola. Para usar apenas um exemplo, uma temática sobre economia, como a inflação, enquanto as TVs comerciais usam os mesmos entrevistados, dentro de uma única universidade há diversos pontos de vista diferentes, conflitantes e complementares. Imaginemos uma grade repleta desses diferentes enfoques.
Outra boa lição do Zoom é que ele não entra neste esquema de coitadinho para quem deram um playground para brincar de TV. Não se encara como uma espécie de espaço a ser preenchido de qualquer jeito, mas sim como um canal que vai disputar o nicho de audiência que procura uma programação qualificada pela busca do conhecimento e de diferentes visões de mundo, como National Geografic, Discovery Channel e History. Portanto, a competição não é entre as IES, mas uma força tarefa para colocar uma alternativa com cor e voz locais nesse segmento, lembrando que, quanto mais globais ficamos, mais necessidades temos de retornar às nossas raízes. Pode parecer pretensioso, mas a energia de pensar grande é a mesma de pensar pequeno.
Então, esse deve ser o caminho para o Canal Universitário Nacional. Em primeiro lugar, buscar viabilizar financeiramente a estrutura inicial de recebimento de conteúdo, empacotamento e tráfego do sinal. A questão do conteúdo inicial já é uma questão resolvida: há canais universitários brasileiros que já operam em 24 horas e que poderiam, neste princípio, fornecer a primeira grade de programação, agregada com os conteúdos da RITU e empacotada com identidade visual própria. Dentro do custo inicial, a viabilização do enlace entre o controle-mestre do canal (que, uma vez mais, pode ser em um canal já estabelecido) e as operadoras, restando, antes, a negociação com cada uma delas. Em seguida, qualificar sua programação para disputar a audiência. A ABTU tem caminhado para cumprir essas etapas, o que tem feito com relativo sucesso, mas na velocidade própria de quem não tem recursos suficientes para arrancar.
Onde, o governo?
A sustentabilidade do canal é uma preocupação, mas também inspirado no modelo colombiano, o autossustentação parece ser possível. Não apenas o já batido e muitas vezes infrutífero discurso dos apoios culturais e patrocínios. Para esse, a qualificação da programação é peça fundamental, mas não tem ajudado muito os atuais canais “concorrentes”. Portanto, devem-se buscar alternativas como a ainda pouco explorada – mas em grande fase de expansão – educação a distância (EaD). O canal universitário nacional poderia ser uma rentável janela de exibição nacional para as instituições. Os grandes recursos que as IES investem neste segmento (que têm dado significativo lucro, institucional e financeiro) teriam uma pequena parte investida no canal nacional, tendo como retorno visibilidade e conteúdo para os seus respectivos projetos de emancipação, via EaD, por todo o país.
E nem estamos levando em conta, dentro da proposta de sustentabilidade do canal, a obrigatoriedade dessas mesmas instituições de tornarem públicas suas atividades acadêmicas e de pesquisa. Tais atividades são em parte considerável bancadas com recursos públicos, diretos, como no caso das instituições públicas, e indiretos, através dos benefícios fiscais às privadas. A divulgação científica é uma obrigação das IES, como parte do retorno que devem dar à sociedade e, convenhamos, ter sua produção exibida em uma televisão, local ou nacional, tem mais impacto e visibilidade do que em uma obscura revista científica enterrada em uma biblioteca. Ok, sabemos que são veículos diferentes, com finalidades diferentes, mas supervalorizar as publicações acadêmicas em detrimento a TV é perpetuar o paradigma do conhecimento intramuros. Portanto, não é uma questão de eliminar uma em relação à outra, mas de valorizar a produção de divulgação científica via TV como também um processo de valorização da IES que a produz, dando pontos nas inúmeras avaliações normativas. Tal iniciativa impulsionaria as escolas para a manutenção dos canais universitários, tanto locais como o nacional.
Ops, mas aí precisaria do governo. E aí, já viu, né?
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