Victor Hugo (1866) manda recado sobre Séc. XXI: "não relaxe!"

 

Navio a vapor em tempos fortes: ilustração de Victor Hugo para Os Trabalhadores do Mar.

 Tenho como costume revezar livros científicos com ficção. Mas, nos últimos meses, a prática pesou mais para os primeiros e confesso que não foi legal. Muita informação para processar. Assim, com a cabeça cheia de um 2020 extenuante e um final de ano que, habitualmente, me deixa emocionalmente tenso, fui correndo voltar à velha prática. E apelei para algo que me levasse o mais longe possível dessa nossa realidade dura. Daí, tirei a poeira d'Os Trabalhadores do Mar, de 1866, do escritor francês Victor Hugo, que acontece numa pequenina comunidade em uma ilha isolada, promessa de me enviar para longe das temáticas que me acaçaparam em 2020. Qual o quê! Não é que me vejo em plena narrativa algo me dizendo: confirmo que o desenvolvimento tecnológico, entre outros aspectos, é marcado por revoluções onde a resistência irracional e fantasiosa à ciência é um dos seus primeiros movimentos trágicos, mas que, olhado à distância histórica, vira momento cômico. Não teve jeito de não pensar que, de novo, vivenciamos isso exatamente agora! Minha fuga foi infrutífera. Explico melhor à seguir.

Os Trabalhadores do Mar faz uma trilogia com Os Miseráveis e Notre Dame de Paris (sim, aquele do deformado sineiro Quasimodo apaixonado pela cigana Esmeralda), com que Victor Hugo quer desmascarar as três grandes lutas da humanidade: respectivamente a natureza, a sociedade e a religião. São uma tríplice ananke (necessidade, fatalidade, em grego) que nos pesa e com as quais temos de pelejar: os elementos e as coisas, as leis e os preconceitos, e os dogmas e as superstições. Tudo isso explicado pelo próprio autor na excelente edição de 2003 da saudosa Editora Nova Cultural, com tradução de ninguém menos que Machado de Assis. 

As desventuras de marinheiros como Gilliatt e Lethierry se passam em torno da ilha de Guernesey, onde o próprio autor fez um autoexílio em meados dos anos 1800. Antes de ler o livro, sequer sabia onde era e a descobri um pontinho próximo à costa francesa, no Canal da Mancha. A descrição da localidade e de seus personagens não podiam ser mais provincianos e mais distantes da nossa realidade nacional, inclusive histórica. Ou seja, pensei que estava bem, longe no tempo, na geografia, na cultura, no tipo de sociedade e de quaisquer aspectos que envolvesse tecnologia, comunicação, ciência, educação.

Pois não é que Victor Hugo me brinda, assim, sem meu consentimento, de uma descrição do primeiro momento da revolução industrial? Quando do surgimento das máquinas a vapor, e sua primeira grande utilização fora das fábricas: a substituição dos navios à vela pelos barcos á vapor, aqueles bem antigos, com as grandes rodas giratórias nas laterais, tipo aqueles que temos na lembrança nos rios Mississipi e São Francisco. ""Ideia louca, erro grosseiro, absurdo": tal foi o veredicto da Academia das Ciências consultada por Napoleão no começo deste século [1800], acerca do vapor". Mas o que mais nos aproxima daqueles tempos ainda estava por vir e, aí, é claro que é muito melhor que o francês nos descreva:

"Os sábios haviam rejeitado o vapor como impossível; os padres, a seu turno, rejeitavam-no como ímpio. A ciência condenava, a religião anatematizava. Fulton [um dos primeiros barcos intercontinentais a vapor] era uma variante de Lúcifer. Os habitantes simplórios das costas e dos campos aderiam à reprovação pelo incômodo que lhes causava a novidade. Na presença do vapor, o ponto de vista religioso era este: a água e o fogo são um divórcio. Este divórcio é ordenado por Deus. Não se deve desunir o que Deus uniu, nem unir o que ele desuniu. O ponto de vista do camponês era: isto mete-me medo".

Mas que não se culpe Deus! Esse movimento tinha só coisas mundanas, como a perda de mercado dos proprietários dos barcos tradicionais e das linhas comerciais - entre eles vários religiosos - para novos empreendedores com máquinas que faziam o serviço muito mais rápido, seguro, econômico. Ou seja, a evocação do Seu nome, assim como hoje, era muito mais para atender aos interesses de uma minoria decadente. Da mesma maneira que a negação dos avanços científicos, das novas maneiras de fazer as velhas coisas, era a estratégia de tentar continuar na perpetuação de um poder cada vez menos real e dependente do seu valor simbólico. E como essa estratégia tem um tempo de sucesso, ela se mantém até que se passe algumas boas décadas e que possamos dar risada.

Sabemos que não foi um movimento único e os militantes do Luddismo, que andaram quebrando as máquinas de tecelagem na mesma ocasião em manifesto à perda e/ou precarização de trabalho, fazem parte dessas manifestações sociais no início da primeira Revolução Industrial. A diferença denunciada por Victor Hugo, no entanto, tratava-se mais de uma resistência pela mudança de mãos do poder econômico do que a mudança do contrato social entre trabalhadores e patrões. "Os capitães teimavam em estar do lado da lona contra a caldeira", "O barco à vela foi declarado ortodoxo". Mas que fique claro que também não podemos ser ingênuos em pensar que não está tudo junto e misturado.

E que temos de cenário mais de 200 anos depois? Uma nova revolução em pleno curso, onde deixam de ser capitães os detentores de meio de produção e seus produtos (que já haviam substituído os detentores de terra e sua produção agropecuária), agora substituídos pelos detentores de meios de captação e comercialização de informação. E que tal revolução tecnológica, como nos exemplos anteriores, vai fazer sofrer milhões de trabalhadores não qualificados para esse novo mundo. O uso da reais angústias das pessoas será estratégia para aqueles que ainda se agarram o modelo falido, que não irá voltar, e que necessita de liderança para que se embarque os velhos marinheiros na nova barca, e não de falsos messias que lhe apontem o apocalipse enquanto os deixam abandonados nos botes salva-vidas.

A pandemia, como em outros setores (olhaí a Educação!), só potencializou o que já rolava. Em temos de Revolução Industrial, nada mais natural do que o desenvolvimento de vacinas locais, preocupadas em fortalecer o acionista - e o seu país de origem - tendo como regra principal a lei da oferta e da demanda (igualmente para seus periféricos, como insumos e seringas). Bem, isso leva tempo, daí a demora do desenvolvimento de vacinas antigas e o não desenvolvimento de outras, não economicamente viáveis pelo ponto de vista do investidor. A Covid-19 finalmente nos levou ao Séc. XXI, onde a informação é o principal insumo, e não a origem do fabricante. E não há fronteiras para esse novo tempo, o que o coronavírus mostrou também ser um problema.

Portanto, no Séc. XXI, a negação das graves consequências da Covid-19, a resistência em perceber o papel social que a elite tem nas mudanças tecnológicas e o desprezo pelos sinais da tempestade que indica a mudança do tempo, somadas as mesmas táticas de uso do medo e das angústias para tentar manter sua base de sustentação, nos aproxima bastante dos ocorridos no início do Séc. XIX. Até casos como a exortação midiática e irracional dos tropeços naturais de uma nova tecnologia - como aconteceu com as experimentações iniciais das vacinas - encontra paralelo na obra de Victor Hugo. No capítulo intitulado 'Justa vitória é sempre malquista', o navio a vapor de Lethierry, mesmo sendo um sucesso, era comparado com outro que tinha sido um fracasso, quando esse havia sido mal construído. "Mas os outros abanavam a testa. As novidades têm contra si o ódio de todos; o menor erro compromete-as".

O maior problema, no entanto, é que se hoje acho graça daqueles que eram contra os barcos a vapor porque se defendiam dizendo que 'fogo e água foram divididos por Deus e o que Deus reuniu o homem não pode separar', não tem o menor humor o aumento de gente que não acredita em imunização ou líderes que entregam a sorte de seu povo ao mesmo Deus (coitado!) sob o argumento de que 'todo mundo morre' e, afinal, isso é um desígnio divino e nada tenho a ver com isso. Espero que meu neto ria disso. Mas, eu, só tenho vontade de chorar.

Curiosidade final que nada tem a ver com o debate. Victor Hugo, ao descrever as viagens do seu herói Lethierry pelo mundo faz uma breve referência ao Rio de Janeiro, nada depreciativa (como aprendemos como a cidade era há 200 anos) e bastante curiosa: "No Rio de Janeiro, viu as senhoras brasileiras colocarem nos cabelos pequenas bolas de gaze contendo cada uma delas um vaga-lume, o que lhes fazia uma coifa de estrelas". Mesmo naquele passado, havia o que de melhor temos em criatividade e poesia. Oxalá que, para suplantar esses tempos onde vapor e vacina se comparam, onde Deus e ciência se antagonizam por interesses mesquinhos de poucos, uma vez mais possamos colocar metafóricos vagalumes em nossos pensamentos e iluminemos um novo tempo para sairmos desse buraco escuro que nos encontramos.

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