Somos todos Van Gogh!

  'Van Gogh: a noite estrelada' que está no Atelier de Lumiéres em Paris com uma imersão tecnológica audiovisual de deslumbrar qualquer um. Perdão: o video nem arranha a verdadeira experiência, mas dá uma parca ideia...


O que Vincent van Gogh sentiria ao se ver no Atelier de Lumiéres, na realidade, experimentasse entrar dentro de seus quadros em um ambiente aquarianamente imersivo, com sonorização acachapante e efeitos visuais deslumbrantes? Sendo um fã um tanto obsessivo do pintor holandês, taí uma pergunta que me divertia ao me afogar na experiência. Aliás, experiência que unia três coisas de que gosto: produção audiovisual, tecnologia e, claro, Van Gogh. Mas, e daí, Vincent piraria uma vez mais ou, finalmente, encontraria a felicidade que nunca alcançou?

Claro, pura especulação, daqui em diante. Ou não, já que uma coisa que ninguém pode acusar Vincent van Gogh é de não ter tentado ser transparente. Suas milhares de cartas enviadas ao irmão Théo são um retrato fidedigno do que sentia. Por elas, um bom psicólogo pode traçar um ótimo perfil, baseado em seus desejos, felicidades e angústias, às vezes conflitantes, mas sempre concomitantes. Da minha parte, um medíocre psicólogo de buteco, sempre me pareceu que ele tem mais a ver com a gente do que gostamos de admitir. Ou seja, como Van Gogh, somos um poço de angústias, em permanente turbulência mental em debate com os outros e com nossos fantasmas, em uma obsessiva busca por uma felicidade que nos é ditada, e não exatamente a que desejamos. Não nos vangloriamos com as grandes alegrias cotidianas para nos automassacrar com as pequenas infelicidades que nos são impostas. Vincent era apenas nós, mas de forma exagerada, como artista pleno que era!

Daí pensar que ele também teria muitas dúvidas do que sentiria ao ver, dentro de um galpão com cara de depósito abandonado, centenas de pessoas, entre adultos e muitas crianças, que estavam ali para, muito mais do que ver, sentir os seus quadros tão arduamente pintados. Penso que, antes de mais nada, ele ia querer ver, afinal, quem eram essas pessoas tão interessadas em algo que ele, neuroticamente, acreditava e desconfiava, não sem um grande custo emocional. Para quem que se achava que era "bom só para algo intermediário, de segunda importância e apagado", todo esse culto em torno de sua obra seria algo estranho, mas, também, seria de grande alegria. Afinal, se colocaria em comum com aquelas pessoas, na melhor acepção da palavra comunicar, que é o que desconfio ter sido seu principal desejo.

Porque, embora ele escrevesse que "como pintor nunca significarei nada de importante, sinto-o perfeitamente", nunca deixava de produzir (e quando deixava, ficava triste), na certeza que essa era uma visão de mundo que merecia e devia ser vista. É essa parte neurótica que nos faz humanidade, a de nos acharmos insignificantes e únicos ao mesmo tempo. Sim, Vincent gostava do que pintava, tinha orgulho ao descrever minunciosamente seus quadros, e dizer como se sentia ao fazê-lo, mesmo também os cobrindo de defeitos. Esses, no entanto, estavam mais ligados as referências sociais e artísticas da época, as quais não conseguia se desvincular, mesmo que seu trabalho fosse justamente nos levar a fazer esse caminho. Sua defesa e ataque à sua própria arte é semelhante ao que fazemos com nossos filhos: estão longe da perfeição, é dureza compará-los com os filhos dos outros, mas, vá lá... é o meu garoto!

Assim, ao ver como sua obra hoje é valorizada e apreciada, Vincent teria mais um de seus destruidores sentimentos dúbios: iria amar que as pessoas o admirassem (desejoso ardente do outro que ele mesmo era), que admirassem a sua obra, não por ser semelhante a isso ou aquilo, mas por ela em si, pelo sentimento que transmitia, pela própria incompreensão que causava, pela rudeza da natureza que eternizou. Também fantasio que gostaria de ver seus quadros reapropriados em outras mídias, já que admirava todas as formas de arte, e ele mesmo gostava de reelaborar quadros de outros artistas, tanto experimentando como colocando sua marca, sua visão daquela mesma obra.

Por outro lado, se sentiria extremamente exposto, como despido em frente de uma multidão, angustiado por tentar entender o que cada uma das pessoas ali estaria sentindo, se estavam admirando, flertando, desprezando ou ignorando. Van Gogh só leu uma crítica positiva sobre sua obra em toda a sua vida (de Albert Aurier, em 1890) e, após um primeiro impacto relativamente positivo, percebeu que a fama talvez lhe cobrasse um preço muito alto: "Queria pedir ao Sr. Aurier para não mais escrever artigos sobre minha pintura; insista que, em primeiro lugar, ele está enganado a meu respeito, e depois que realmente eu me sinto muito arruinado de desgosto para poder enfrentar a publicidade.  Fazer quadros me distrai, mas ouvir falar neles me é mais difícil do que ele pensa...". Penso em tantos grandes artistas que sofreram do mesmo mal, alguns dando conta sabe lá a que custo, mas outros também não, entrando no mesmo caminho da autodestruição...

Vincent van Gogh queria alcançar a imortalidade, não de si, mas de sua visão do mundo, embora intuía que tal trajetória era algo bem complexo: "não sei quem definiu este estado: ser atingido pela morte e pela imortalidade". E foi o que lhe aconteceu, como todos sabemos.

Mas também me diverti pensando em três coisas que, provavelmente, ele faria: a primeira era catar todos os sem teto de Paris e obrigar aos organizadores a deixá-los entrar de graça, quando não residir no galpão de exposição. A segunda, questionaria qualquer um que ficasse a frente de seu quadro para que ele descrevesse o que a pobre pessoa sentia (e coitada se ela só estivesse passando...). Por fim, ele iria sair quebrando os canecos, rasgando as camisas, queimando os panos de prato com a impressão da sua obra: uma coisa é revisitar sua arte com as técnicas de outra arte, outra coisa é mercantilizar pedacinhos descontextualizados de suas pinturas em objetos de uma sociedade de consumo que, já na sua época, ele já desprezava fortemente.

Pensando bem, ainda bem que ele não viveu para ver isso. Mesmo porque eu gosto muito da minha caneca!

Para quem chegou até no fim: dois ótimos recentes filmes tratam dos momentos finais da vida de Vincent: No portal da eternidade, com Willem DaFoe (Prime Video/Amazon) e Com Amor, Van Gogh (Netflix), uma fantástica animação feita a partir dos quadros do artista, e usando o mesmo estilo do pintor. Ambos revisitam a enigmática e mal explicada morte de Van Gogh, tratada pelo roteiro mais fácil do suicídio. Bem, mais do que isso, seria spoiler....

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