Quem vê a TV que a criança assiste?
Soul é ótimo, mas é menos para crianças e mais para cadernos de Cultura, e isso é ruim. Imagem: divulgação |
Percepção dos pais é que 76% das crianças passou a ver mais televisão na quarentena. Nem precisava de pesquisa para isso, essa é que reportada pelo site Tela Viva. Cartoon Network garante topo da TV paga por oito anos consecutivos, outra óbvia para os especialistas. E no aplicativo da TV Brasil, única emissora aberta que mantêm programação infantil digna deste nome, dos 12 programas mais populares, 8 são do público infantil. Insisto: quem presta atenção nisso senão os canais pagos e a resiliente equipe de programação da TV estatal federal? Porque, na minha humilde opinião, deveria ser um assunto para pais, escolas, embasados pelos cadernos de educação e cultura dos portais, jornais e revistas, e não ficar restrito aos meios especializados. Será possível que tão poucos estão olhando de lado e vendo que as crianças estão assistindo televisão adoidado?
A indústria da internet conseguiu vender bem a morte da televisão - embora ela esteja mais viva do que nunca! Ela tem migrado e amalgamado com o novo meio, dada a sua potência enquanto meio de comunicação de massa, e a pandemia ampliou ainda mais esse fenômeno: entre o caos das redes sociais e a vida ordenada da televisão, as pessoas preferiram a segunda (lembrando que nem todo caos e ordem são benéficos ou malígnos e que não possa haver caos na ordem e vice-versa, mas como isso tudo é complicado demais, fica mais fácil polarizar). A enorme maioria das citações nas redes sociais estão associadas a programas de TV e sua programação já está lá em muitas formas.
Portanto, quando falamos em 'assistir televisão', embora cada vez mais isso esteja ficando evidente, é conveniente sempre repetir: estamos dizendo de uma programação televisiva, de um tipo de produção audiovisual com gramática, narrativa e formatos mais ou menos específicos, que, originalmente, estavam em televisores fixos nas salas e quartos e que agora estão em outras telas, em geral oferecidas por plataformas de video e aplicativos. Pegando o próprio exemplo do Cartoon Network, o canal explica na reportagem, com orgulho, que, no YouTube, "alcançou uma média de 27 milhões de pessoas por mês, acumulando 4,5 bilhões de views em 2020 nos seus canais em português e espanhol. O perfil oficial do Cartoon Network no Brasil registrou mais de 13,5 milhões de espectadores únicos mensais e um crescimento de 30%, em relação ao ano anterior. A marca também passou a oferecer 334 horas de live streams em seus canais do Youtube, um crescimento de 370% comparado com 2019."
Já nas redes sociais, o canal pago "atingiu 12 milhões de pessoas, um crescimento de 12,4% em relação ao ano anterior. Os perfis da marca no Facebook, Instagram e Twitter registraram mais de meio bilhão de impressões, 83% mais que em 2019. Neste ano também, a marca teve a maior média de engajamento nas redes sociais entre os concorrentes infantis diretos, chegando a 43%." E já é um fenômeno no TikTok, onde, em seis meses, "registrou 1,3 milhão de seguidores e 48 milhões de visualizações em seus perfis em português e espanhol. No perfil da marca no Brasil já são mais de 700 mil seguidores." Na reportagem da Tela Viva, só finalizando é que citam os dados na TV Paga, incluindo que, no canal, as crianças e jovens de quatro a 17 anos assistiram uma média de quase duas horas por dia. E olha que estamos falando de apenas um canal. Para lembrar, ainda tem o Gloob, das organizações Globo, o Nickelodeon e os etários Disney, apenas para citar os mais vistos. E que desde que me entendo como gente de televisão, acompanhando índices de audiência, os canais para crianças sempre suplantaram os para adultos, em muito, a ponto de ter uma tabela dos canais infanto-juvenis, tipo série A, e outra para os canais adultos, bem abaixo, quase série C. Embora acreditemos que somos quem manda - aliás, essa impressão equivocada está tendo uma consequência nefasta, que o Soul é um reflexo, mas falo adiante.
A pesquisa sobre a percepção dos pais tem dados muito mais interessantes do que o título aponta. Na realidade, a reportagem, também da Tela Viva, é um ótimo resumo de uma pesquisa que merece ser conhecida mais a fundo, realizada pelo Gloob em parceria com o Coletivo Tsuru e Quantas e apresentada como "Entretempos, relatos e aprendizados sobre as crianças nessa pandemia". Foi realizada online, com crianças entre seis e 11 anos e seus pais. Nunca poderá ser interpretada como um retrato fiel da infância brasileira, pois as amostras não são grandes e, bem, o interesse fundamental da pesquisa é ajudar um canal pago a melhorar sua abordagem, e ter acesso à internet é fundamental para essas pretensões. E estamos em um país onde a maioria das crianças não tem acesso a TV paga e a internet, e quando têm, não com qualidade e preço para que possam assistir adequadamente. Então, é um retrato bem recortado de um público específico, mas que tem ótimos indicativos sobre a recepção infantil e parental, que podem ser pensados, extrapolados, mas nunca totalmente generalizados. Em síntese: os pais notaram que as crianças estão assistindo mais programas em formato de TV, mas elas também ampliaram os jogos online, os videos no YouTube e a participação em redes sociais, além de bombarem o TiK Tok. E, principalmente, não estão sabendo o que fazer com esse novo momento.
Somo a essas duas pesquisas, a visita ao site do aplicativo da TV Brasil, depois que soube a emissora do governo federal alcançou mais de um milhão de inscritos no YouTube. Embora a reportagem acima aponte que se deve o aumento aos programas de reportagem, tenho sérias dúvidas sobre isso. Primeiro, porque estudos anteriores já indicam que havia um crescimento da TV Brasil pelo país justamente por ser a única rede nacional que privilegia a programação infantil. E me parece uma conclusão óbvia: se as crianças de famílias com poder aquisitivo sustentam as maiores audiências na TV paga, me parece que o aumento da audiência em uma TV gratuita pode muito bem ser sustentada pelas crianças de famílias com menos recursos. Claro, é uma lógica que precisa de comprovação, mas, por hoje, estou confortável com ela. Mesmo porque, o aplicativo mostra que os programas infantis são os mais requisitados da grade disponível, em um sistema, suponho fortemente, automatizado. E, veja bem, estamos falando de um público com alguma internet. Pode-se imaginar em uma pequena cidade do interior, sem TV paga e internet que preste?
Programas da EBC mais procurado no aplicativo. Imagem: TV Brasil Play - 22/2/21 |
Claro, e temos que levar em conta que, infelizmente, por falta de opção, as crianças e jovens estão assistindo programas de adultos. E isso não me parece algo que tem preocupado a quem deveria, aqueles que apontei acima. E essa adultização da programação infantil está passando desapercebida até por quem deveria noticiá-la e, pior, produzi-la. E chegamos onde deveria ter sido o início deste artigo, o que me incomodou a ponto de escrevê-lo: é que, nesse fim de semana, fui assistir ao cultuado Soul, da Pixel/Disney, a nova animação queridinha de 10 em 10 cadernos culturais do país. Demorei um tempo para assistir, querendo juntar minha esposa e uma criança, o que só aconteceu agora. Pois minha esposa dormiu, meu sobrinho de 7 anos não conseguiu se concentrar e o único que estava gostando era eu. Desisti e passei para Carros, o primeiro, que eu e minha esposa já tínhamos assistido. Não só ela acordou como meu sobrinho curtiu do princípio ao fim. O que aconteceu?
Soul é ótimo, mas não é para crianças. E desconfio que é só para quem lê caderno de cultura. Tanto é que, depois da badalação na sua estreia - associado ao lançamento do canal Disney+ - sumiu da mídia. Tem dezenas de referências que vão de Picasso a Jung - explícitas, do tipo que o intelectual amador - como é o meu caso - reconhece na hora e pensa "captei! captei a vossa mensagem, amado mestre"! Mas é preciso um doutorado para entender 60% dos eggs - deixas para nerds encontrarem, baseados em cultura pop ou sofisticada, que nem ovos de Páscoa de um Umberto Eco escondidos no jardim. Minha desconfiança - porque tenho visto isso em outras animações cada vez mais 'sofisticadas' - é que a expulsão da programação infantil das telas - fenômeno que a TV aberta colocou em prática já algumas décadas - tem passado a impressão aos produtores infantis que não temos mais crianças normais. Ou já nascem superdotadas, ou são umas tábuas rasas sem educação e esperança. Como várias coisas que estamos vendo retroceder, uma delas é voltarmos a ver as crianças como adultos em miniatura. "Ora, se ela - e seus pais - não entenderam a referência sobre Newton em Soul, é porque não estudaram direito, porque essa é uma concepção universal".
Não, e não se pode acusar de que não confio na capacidade das crianças em entender questões importantes em desenhos complexos. Elas já fazem isso em outras produções como, por exemplo, as outras ótimas da Pixar, como Toy Story e Divertidamente. No próprio Cars, um dos destaques é exatamente as mensagens do egocentrismo e da importância da colaboração, ambas características infanto-juvenil e, portanto, perfeitamente em sintonia com o seu público. Por fim, me lembrei que, antes da exibição dos seus grandes filmes no cinema, a Pixar exibia pequenos filmetes, lindos e profundos, mas que era preciso um certo desenvolvimento cognitivo e cultural para entender tudo. Tudo bem, era um exercício salutar, tanto para quem produz, como para quem vê. Pois é, acho que a turma dos shorts films se animou e fez um de 1h47min. O pessoal estava tão focado em profundidade que até o acontecimento central que deveria ser o mais engraçado entre as crianças é tão batido que, quando eu era criança, já estava na Sessão da Tarde.
Pronto, falei! Volto a dizer, Soul é ótimo, mas o que irrita é ser vendido para crianças quando é um desenho para adultos que querem se sentir sabidos, antenados e cool. E é apenas um dos exemplos de produções que vai afastando às crianças das produções pop e jogando-as para as produções que não respeitam seu momento de vida social e biológico, no estágio cognitivo que inúmeros pesquisadores e pedagogos gastaram muito esforço para chegarem entenderem alguma coisa. Para esses educadores, ainda falta muito para entender, ainda mais em momentos de transição tecnológica que testa cada vez mais os limites neurológicos e sociais das crianças e de nós mesmos.
É preciso que pais, educadores, cadernos de educação e cultura conversem com quem realmente entende de crianças, para que explique, mais uma vez, que elas crescem por fases, cada uma delas com características próprias, com limitações importantes para a compreensão do mundo. A nossa sorte - e daí o sucesso dos canais infantis e da programação da EBC - é que temos muita gente produzindo coisas muito legais, apropriadas para os jovens. E que, talvez, elas estejam assistindo sem que a gente saiba. Mas, se não sabemos, também podem estar assistindo a outra coisa.
Para ajudar, não precisa muito: primeiro, perguntar do que gostam e pedir para lhes apresente os personagens - eles adoram falar de quem gostam. Segundo, não precisa assistir junto - embora fosse bom -, mas perca o preconceito por ser um programa de TV, e de onde ele está sendo assistido. Há, por trás da grande maioria dos programas voltados para as crianças, muita gente preocupada com os aspectos por nós desconhecidos, mas bem conhecidos e identificados por elas, as crianças. E mesmo quando os produtores erram, como no caso do Soul, o máximo que podem fazer é agradar ou fazer dormir os adultos.
Aproveito para uma propaganda básica:
Meu livrinho, onde trato sobre a teoria e a prática para entender a televisão feita para as crianças, publicado em 2007 e resultado de pesquisa feita nos anos anteriores. O jornalista e pesquisador de TV, Gabriel Priolli, teve a generosidade de escrever: "É no rumo da desmistificação dos conceitos arraigados sobre TV e criança que Cláudio Magalhães envereda, enriquecendo um debate que, em geral, peca pelo maniqueísmo. Sua tarefa começa na própria definição de “programa educativo”, analisada aqui em todas as suas fragilidades, para demonstrar-se limitada e imprecisa. Avança pela evolução histórica da televisão educativa, flagrando as incoerências atuais entre discurso e prática de um modo de produção, que afirma repudiar as injunções do mercado, mas que cada vez mais busca no financiamento da publicidade comercial o lastro econômico para sobreviver. E culmina no exame detalhado de dois produtos exemplares – “Castelo Rá-Tim-Bum” e “TV Xuxa” -, extraindo de sua dissecação uma certeza: a de que educação e diversão podem coexistir na televisão infantil, seja ela estatal ou privada, e que a fórmula ideal talvez esteja no equilíbrio desses elementos. Repleto de informações úteis e de interpretações ricas, este livro tem uma vantagem adicional: é obra de autor “anfíbio”, imerso simultaneamente na prática televisiva e na reflexão acadêmica. Ao contrário de tantos trabalhos que demonizam a TV e quem a faz, este pode – e deve – ser lido por quem quer compreendê-la bem, para fazê-la melhor."
Para quem se interessar, além das vendas nas livrarias tradicionais, também tenho alguns exemplares a venda a preço promocional de R$ 20,00. É só me mandar um email, e combinamos: (claudio.marcio308@gmail.com).
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