Vacinas aprovadas, lições aprendidas?

Você se lembra do Sugismundo? O comercial é de 1977, mas poderia ser exibido hoje: onde perdemos o rumo, meu Deus? Salva a gente, Pandora!

  Finalmente, vacinas aprovadas no Brasil, início da imunização. Ainda faltam muitíssimas coisas, vai demorar, mas é aquele passo, imenso, de início de jornada. Espera-se, anseia-se, prepara-se, angustia-se muito antes de lançar o barco ao mar. Mas agora ele está na água e - embora se prevê novas tempestades - o que importa é que é uma questão de tempo até chegar a outra margem. Beleza, mas o que podemos dizer desse processo? O que aprendemos sobre os avanços e retrocessos demonstrados pela Humanidade, em especial, essa humanidade que habita nosso território? Há coisas para nos orgulhar, e outras, para nos envergonhar. E algumas questões a serem respondidas com o tempo.

Desenvolvimento das vacinas: em geral, uma vacina leva mais de dois anos para ser desenvolvida. Então, é significativo que existam mais de dez vacinas aprovadas ou em fase de aprovação. Significa que a ciência descobriu novas metodologias - ou revisou seriamente as que utiliza - para diminuir esses prazos. E isso é, literalmente, menos pessoas morrendo. Por outro lado, nos reafirma que as questões de saúde coletiva mundial ainda estão condicionadas às desigualdades sociais. Há doenças que afligem a Humanidade há muito mais tempo e não se vê o mesmo empenho, como a malária e a dengue (e suas irmãs). Posso estar sendo leviano, na minha ignorância sobre as diferenças biológicas entre os males, mas não consigo deixar de pensar que a Covid-19 mobilizou tantos recursos porque atingia todo mundo (e suas elites econômicas), ao contrário daquelas outras doenças, mais restritas às populações e países pobres. A febre amarela, por exemplo, tem vacina. Mas lembremos que essa doença atrapalhava bem mais o avanço econômico pelas florestas do que a sua prima malária. Mas, quem sabe, agora que se revisaram os processos, essas outras doenças relegadas podem ter um destino diferente? Com o desenvolvimento dos países africanos, inclusive em tecnologia e conhecimento científico, a experiência da Covid-19 pode ajudá-los, e a nós, por consequência fortuita, já que os eurocêntricos não se mostraram interessados ao longo da História.

Revalorização da Ciência: Trump, Bolsonaro e outros déspotas estavam nos passando a impressão que voltávamos a Idade Média, onde as crenças sem qualquer ligação com a realidade empírica valiam mais do que a ciência, do que o desenvolvimento de um pensamento científico. Claro, tais crenças tinham muito mais a ver com as questões de politicalha do que uma verdadeira convicção espiritualista. Pois bem, parece que uma parte também significativa desta Humanidade tem visto o perigo de uma nova Inquisição, e lembra-se que ela aconteceu não porque os demônios subiram dos infernos, mas porque os próprios homens os colocaram para tomar conta da lojinha. Um já foi despachado. Outros, como Boris Johnson, da Inglaterra, reviu seus diabretes, não porque foi iluminado, mas pressionado pelas hordas superiores. Faltam alguns outros. E também criar condições para que se mantenha as portas do inferno lacradas (ops!). Divulgação científica de qualidade aí, pessoal!

Mudança nas prioridades de saúde: longe de saber se está mais para comprovação ou um desejo de esperança: mas, depois de um século valorizando exclusivamente o individualismo - inclusive nas políticas de saúde - seria o momento de nos pensarmos enquanto espécie? Só para um exemplo rasteiro, houve menos investimento em hospitais para conter doenças coletivas do que para construir casas de espetáculos, como estádios de futebol. É inegável que doenças não epidêmicas tiveram grande avanço em seu cuidado, como Alzheimer, câncer (alguns tipos), diabetes, mas essas conquistas chegaram quase que exclusivamente para aqueles com planos de saúde, que privilegiam o CPF, não o conjunto de pacientes. Tanto é que as filas para exames diagnósticos ou de acompanhamento, as consultas periódicas e todo um conjunto de instrumentos de prevenção ou de cuidados permanentes que evitem agravamentos não foram devidamente incluídas para as políticas de saúde públicas e, em muitos casos, até mesmo dos instrumentos privados: não é mais raro hospitais de planos de saúde lotados em época de gripe, com pais e crianças esperando horas para serem atendidos, médicos que marcam consultas com meses à frente, exames cada vez mais restritos. Dada as devidas proporções, onde os pobres sofrem muito mais que a classe média nesse quesito, são fenômenos que quem paga acreditava estar isento. Tudo isso mostra uma visão individualista da saúde, ou seja, ter um sistema que atenda, no máximo, 30% dos 'clientes', enquanto os outros 70% pagam a conta (e o lucro). A pandemia, e o risco de vir mais por aí, podem levar aos planejadores a repensar a prioridade no indivíduo - sem tirar os ganhos realizados - e pensar no coletivo. Não tenho a mínima ideia de como pode ser isso, mas já fomos assim no passado, e, de novo, o desenvolvimento das vacinas em breve tempo demonstrou que não nos falta criatividade e empenho para resolver problemas dessa espécie e para a nossa espécie.

Retrocesso no Imaginário Vacinal: essa é de doer o coração! Acabo de ler de uma profissional de relações públicas sua ironia, ao escrever que estaria pronta para ceder seu lugar na fila de vacinação, pois não pretende tomar a 'vachina'. Um profissional de relações públicas! Alguém que passou por uma universidade, local de construção de Conhecimento, meca do desenvolvimento do pensamento científico; uma profissão em que tem como base as interações entre as pessoas - e não lhe ocorre, no mínimo, que a sua recusa oferece risco a si e aos outros justamente no campo das relações públicas! Atenção, esse é um tétrico fenômeno mundial, embora doa mais no Brasil, graças a nossa desigualdade social, que mata gente, e que a ignorância só amplia o massacre. Estamos na Revolta da Vacina, nos primeiros anos do Séc. XX? Pior, porque, naquela ocasião, era uma briga entre os ignorantes (sempre no sentido de desinformados) e o Estado que, naturalmente, costuma ter o benefício e a facilidade do Conhecimento Científico. Diferente de agora, onde o governo é o fomentador do pensamento anticientífico.

Uso politiqueiro da saúde: Até pouco tempo atrás, vacinação era algo tão tácito, e tão natural, que já havia deixado de ser pauta em conversas há décadas. Já havia saído do campo da política, essa bela arte de dialogar, amenizar as radicalidades, amalgamar as semelhanças e confraternizar as diferenças de visões de mundo (como se lê, pouco a ver com politicagem, politicalha, politiquice). Afinal, onde não há dúvidas, não há necessidade do exercício cotidiano da política. Vacinação era só algo a mais a se fazer, obrigatoriamente e sempre, como pagar IPVA, IPTU, tirar férias, fazer compras. Quando isso ficou sofisticado? Por curiosidade, fui checar nossos cartões de vacinação e, olha lá, já tomei um tanto de vacinas do Butantã e da China (não, não virei jacaré). Mas, sério, quando ficou fundamental saber qual era o fabricante, de que país, o nome da vacina H1N1 que tomo todo ano? Das inúmeras que são aplicadas em nossos filhos? Quando essas informações se tornaram relevantes? Infelizmente, quando se tornam instrumentos de uso da saúde para politicagem. Como todo bom profissional da comunicação sabe, a melhor maneira de desinformar é informar em excesso e sem compromisso com fatos, e além da conta do nosso processamento mental para não ter espaço para o contraditório - mas, que depende, por sua vez, de como fomos ensinados a pensar, na escola e na sociedade. Talvez a escola também tenha sido vítima dessa nossa naturalidade - ou ingenuidade - de pensar conquistas da ciência humana como algo já dado. E agora estão lá os professores - e ainda a distância - tentando convencer os alunos que as tais vacinas são justamente o exemplo que eles queriam dar de contextualidade, do 'para que você precisa aprender isso', quando estudam células, vírus, matemática, geografia, história, filosofia, sociologia e até o português, para saber interpretar direto as sandices dos demônios.

Esses dois últimos itens é que precisam ainda mais de revisão depois da vacina. Seremos capazes de colocar a educação em benefício de uma construção de pensamento científico que evite uma nova Inquisição, ou, ao menos, que ilumine os jovens para questões tão óbvias como o planeta é redondo e a vacina salva vidas? Seremos capazes de tirar a saúde coletiva do plano egoísta de um dirigente - por mais força politiqueira que ele tenha - e retornar a ser uma questão de Estado, como aconteceu na elaboração e no surgimento do SUS?

Como todos, me sinto meio perdido sobre o que pensar. A mitologia é um dos instrumentos que tem ajudado a Humanidade desde sempre, mesmo após a soberania da ciência. Tudo bem, ela conta nossa história com histórias que nos trazem algum alento. Porque tenho sentido que o mundo abriu recentemente a Caixa de Pandora, a mulher fantástica e cheia de dons criada pela coletividade dos deuses do Olimpo (aliás, sempre gostei dessa história que, embora tenha sido imaginada de forma machista - a mulher foi criada para castigar o homem, Prometeu - tem uma pegada feminista: enquanto o homem foi criado de forma bem simples, Pandora contou com a contribuição de, pelo menos, cinco deuses de elite - ou seja, uma obra muito mais sofisticada e divina!). Pois bem, como lembram, Pandora abriu inadvertidamente a caixa e deixou escapar todos os males do mundo. A moça, no entanto, foi esperta o suficiente e teve forças para fechar e guardar a única coisa com que a Humanidade pode contar nesses momentos de caos: a Esperança. Portanto, é com essa sabedoria feminina que conto.

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