Inteligência Artificial recria Guimarães Rosa e destroi nossa autoestima

Eu não daria um tostão, mas houve quem pagasse U$ 500 mil por essa criação de uma IA. Imagem: Reprodução/Christie’s

Uma parte de nós acredita que a Inteligência Artificial (IA) é pura ficção científica. Na hora do 'vamos ver', nada substituiria a complexidade do Ser Humano, que envolve muito mais do que conexões matemáticas e adaptações ambientais. A infinidade de variáveis incalculáveis e caóticas, além do domínio do planeta, nos deram Mozards, Da Vindis, Van Goghs, gênios artísticos que extrapolaram a matemática e o contexto onde viviam, o que mostraria que somos mais do que meras criaturas atendendo ao chamado da natureza. Mas, e se uma Inteligência Artificial pudesse, também, ser como um desses gênios? E se Minas pudesse ter um segundo Guimarães Rosa, agora vindo de um software? Acabaria nossa relevância enquanto espécie? Essa é uma questão que dá para pensar agora, pois já há IA podendo ganhar prêmio literário.

O antropólogo Hermano Vianna fez um curioso e apavorante teste com uma das mais avanças tecnologias de Inteligência Artifical, o GPT-3, da OpenAI. Porque, apavorante? Bem, para quem depende da sua criatividade e habilidade de escrita, é mesmo de arrepiar os cabelos. O GPT-3 tem uma absurda capacidade de escrever textos sem que uma mão humana o direcione. Daí Hermano entrou num dos jogos do sistema, que permite você colar um pedaço de um texto e solicitar que o robô esperto continue ou faça um texto semelhante, imitando o estilo. Veja bem, o estilo, essa coisa que nós, humanos, acreditamos ser próprio de nós, talvez único, inimitável por quem não tem esse conjunto de sentidos, sentimentos e fluídos corporais. Ou apenas nos iludimos.

Pois bem, o antropólogo nem quis dar mole para a IA! Já colou logo de cara uma frase do Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, o nosso Prost mineiro, aquele baita escritor que colocou num liquidificador tudo aquilo que custamos a aprender nas aulas de português e as supostas diferenças entre poesia, prosa, língua escrita e falada. Pois Hermano tascou um "Alvejei mira em árvore, no quintal, no baixo do córrego". O GPT-3 não se fez de rogado, pulou da sua língua de origem, do inglês para o português com a facilidade de um tradutor extraterrestre de Jornada nas Estrelas (o que, convenhamos, já não é pouca coisa), e emendou a seguinte frase: "uma fogueira crepitante brinca e lambiça em torno de um lindo carvalho".

Eu tremi!

O Hermano Vianna, menos. Do alto de seu enorme conhecimento do autor, disse que nunca iria creditar tal frase ao Guimarães Rosa (algo como 'carvalho' não é de nossa flora e 'crepitar' nunca foi usado pelo autor), mas, para mim, passaria batido legal! E como sabemos que essa tecnologia avança super rápido, fiquei pensando que o GPT-3 passou o fim de semana pensando que a sua próxima meta é enganar o Hermano Vianna. Como vimos em Exterminador do Futuro, IA com foco é um perigo! Ou seja, a questão da criatividade humana não me parece ser mais o diferencial entre nós e a IA.

De qualquer forma, já sabíamos disso, talvez estivéssemos a nos enganar. Como sabemos, IA, para escrever textos. já existem muitas por aí. É muito capaz que, se você gosta de ler textos curtos de jornais on-line, você está lendo textos noticiosos feitos por um robô. Cá entre nós, não é algo que me espanta. Nós, jornalistas, já estávamos mesmo virando robôs de carne e osso. Não é por uma questão de caráter, mas de sobrevivência. Minha geração de jornalistas era dividia em castas: impressos, TV, rádio. Hoje, o coitado tem que filmar, editar, gravar áudio, e, bem, escrever. Tudo porque é preciso economizar para o empregador.

Mas, é claro, isso não foi acontecer somente com os profissionais de escrita, mas todos aqueles que também entraram na onda (obrigatoriamente) da velocidade produtivista e tiveram que produzir muito mais em muito menos tempo, e acumulando funções que antes eram divididas em especialidades dentro das profissões. Inclui-se aí advogados, engenheiros, administradores, e muito mais, todos aqueles que, de alguma forma, utilizam suas práticas anteriores para resolver um problema de agora.

Então, a padronização virou uma ferramenta para produzir como exigido pelas empresas, no menor tempo possível. E, agora, em todas as plataformas. Para a insanidade não tomar conta, foi melhor reduzir tudo a um tipo de fórmula. Daí, para a IA ser uma nova opção para as empresas foi um bit. Como sempre dito pelos especialistas, a IA irá substituir os trabalhos repetitivos, os que já têm as tais fórmulas consagradas.

Veja que isso era um certo alívio para as profissões ditas 'criativas', já que se espera menos repetição. Mas os sinais já estavam mais do que claros: softwares de designer dos mais simples, como PowerPoint, Prezi, Layout já faziam o grosso da criação de peças visuais para sujeitos como eu que não sabe nem combinar tonalidades de cores. Daí, partir para criações mais arrojadas era uma questão de tempo, que é o que essas IAs tem de sobra, já que não são contados nos limitados minutos com que temos que marcar nosso pagamento de boletos.

Se chegou até aqui e acredita que tem uma solução do tipo 'não se preocupe, vamos achar um jeito de não perdermos nossos empregos criativos', bem, não é o caso. Estou aqui pensando que, também como já é dito, é tudo uma questão de grana. Que as IAs serão desenvolvidas onde puder gerar ou cortar recursos. Daí, voltando ao inicio do texto, quando disse que o GPT-3 poderia me enganar dizendo ser um Guimarães Rosa, ficaria muito mais fácil existir uma IA que copiasse o estilo de J.W.Rowling, que construísse um novo Harry Porter e seu universo multimilionário de franquias, mas sem precisar pagar royalties e muito menos ter poder de veto emotivo, e tendo o caminho livre para explorar os personagens mesmo que de forma incoerente e antiética.

Me lembrei que, nos anos 1980, foi lançado uma coleção dos livros de banca da Agatha Christie, autora que já havia lido esporadicamente. Saia um por semana, era barato, eu lia e me deliciava avidamente dentro desse prazo. Mas quando chegou na décima semana, começou a perder a graça: já no início do livro eu já sabia quem era o assassino. Ou seja, já havia entendido, instintivamente, qual era o estilo da escritora. Porque tinha um padrão. Bem, e se tem um padrão, é factível a ser repetido. E se pode ser repetitivo... acho que entendeu o ponto!

E para ser ainda mais sincero, nem vai precisar copiar. Como na ilustração que abre esse artigo, já tem IA ganhando muito dinheiro, para os seus criadores (por enquanto, enquanto elas ainda não se uniram com as IA bancárias para abrir sua própria conta). E se tem grana envolvida, saibamos que mais vem por aí. Inclusive se aproveitando da própria insanidade humana, que abastecesse o consumismo. Porque, convenhamos, o tal quadro é feio demais.... Mas quem sou eu para opinar, nem consigo distinguir Guimarães Rosa de uma IA!

Então, como ficarão os gênios, os artistas talentosos e os nem tanto? Não sei. À princípio, alguém terá que ensinar as IAs, mas, sendo IAs, em breve não precisarão de aprender com os humanos. A indústria cultural vai continuar bombando e, com maior ociosidade das pessoas, cada vez mais (mesmo que essa ociosidade não seja uma opção, mas resultado de desemprego, exclusão). Por outro lado, também somos bons em detectar padrões e, como aconteceu antes, podemos nos cansar da criação das IAs artísticas e voltarmos para nossos artistas de carne e osso. Ou esses criadores vão se utilizar da mesma IA para ampliar ainda mais suas criações... Sabe-se lá! O que importa é que ainda nem começou essa revolução, artística e financeira. Vamos acompanhar, entre encantados e apreensivos. Mas dentro de mistérios de autoria do crime/arte que nem a Agatha Christie poderia prever.

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