Pós-verdade tem pouco de pós e muito de humano

Quem acha que pós-verdade é algo novo, devia ler esse clássico

A palavra da moda é a "pós-verdade". Em 2016, o Dicionário Oxford a elegeu (post-truth) como a de maior destaque do ano. Para os britânicos, é um adjetivo e, portanto, precisa de um substantivo para puxar o saco ou denegrir. Mas, tal a quantidade de artigos e debates que tem sido alvo, a palavrinha tem se destacado mais como um nome próprio (estaria, ela mesma, virando uma pós-verdade?). E, geralmente, está intrínseca a algo moderníssimo, criado pela sociedade da informação e pela profusão das mídias sociais eletrônicas. E pela guinada à direita da humanidade, que agora sufoca a verdade através de suas manipulações. E que estamos, portanto, a beira do abismo ao entrar em uma nova era, a era da pós-verdade. Bobagem. A tal pós-verdade sempre existiu, é inerente ao homem e gostamos bastante dela, sendo de esquerda ou direita. O que é verdade é que, realmente, é um adjetivo: o homem é pós-verdade!

Segundo Oxford, o adjetivo seria a representação do que está relacionado ou denota circunstâncias nas quais os fatos objetivos são menos influentes na formação de uma opinião pública do que apelos emocionais e crenças pessoais. Quando elevada a condição de substantivo, representaria a mentira disfarçada de verdade, ou uma mentira que pode ou não ser uma verdade, mas que isso não tem importância para quem a consome, uma vez que serviria apenas para confirmar seu julgamento e preferência, suas emoções e credos.

Mas, primeiro, para entender o que é pós-verdade é preciso pensar no que seria essa tal verdade que se supõe ser herdeira. Deixo para os filósofos o aprofundamento da questão, mas basta-me pensar que verdade já é, por si, algo bastante incerto. Depende do ponto de vista, e de que lado você está do fato. E quais as variáveis que estão em torno... ou seja, é difícil determinar até se ela existe como algo único. Por mim, acredito até que a verdade verdadeira, em sua maioria das vezes, é, muitas vezes, cruel, ou irreal, ou ambas. E, portanto, muito dificil de encarar. Em grande parte, somos violentos contra os outros e contra nós mesmos (física e emocionalmente), vingativos, moralistas hipócritas, e encarar nossas dificuldades sociais nunca foi nosso forte. Por outro lado, a humanidade também é muito criativa, com grande capacidade de percepção e adaptação, de resiliência,  dura na queda e senso (ou necessidade) de vida em grupo.

E como resolvemos esse impasse? Ora, sendo pós-verdadeiros. O que é a religião, as históricas épicas dos antepassados e, por que não, a busca pela ciência? Todas as três manifestações estão nos primórdios da humanidade. Afinal, qualquer que seja a religião, não é exatamente a procura de uma formação de opinião pública apelando para a emoção e crenças do que por fatos concretos? Que Tiradentes se parece com Jesus ao invés de um Forrest Grump às avessas? Que a Terra gira em torno do Sol (até pouco tempo atrás), que temos planetas habitáveis logo ali (essa é atual)? Tudo isso não pode ser julgado como uma mentira disfarçada, que pode ou não ser verdade, mas isso pouco importa, pois o que queremos dela é apenas o conforto de uma certa ordem no caos que é a verdadeira verdade? E o que vai, ao final, decidir o que é certo ou errado é o que sinto, e não o resultado de uma profunda análise crítica da mídia. É triste, mas é assim que caminha a humanidade. Para o mal, mas também para o bem, já que graças a tudo isso criamos cenários imaginários e tecnologia em que pudéssemos a prova a tal pós-verdade, e avançamos enquanto espécie.

Ah, mas agora estamos sendo manipulados por aqueles que detêm o poder da mídia eletrônica! Mas, o mundo antigo da pós-verdade também nos ensinou que, para acreditarmos em nossa suposta ética moral, tínhamos que construir uma delas, e pensamos que existe um jornalismo isento, que está unicamente compromissado com o interesse público. Exceto por alguns espasmos muitos dos ocasionais, e com duração ainda mais limitada, a impressa e o jornalismo sempre foram compromissados com os poderosos. A comunicação, enquanto produto, não se difere dos demais e, como os demais, sempre foi um meio de produção que visa os interesses daqueles que o detêm, e isso independente da linha ideológica partidária. Esquerda e direita sempre manipularam seus produtos - da agricultura à impressa - conforme o que acreditavam ser a sua verdade.

As primeiras agências de notícia surgiram quando alguns nobres descobriram um ótimo negócio. Se enviassem cavaleiros pelos reinos, recolhendo notícias, fariam um clipping com as principais e devolveriam aos reinos com aquelas de interesse de cada feudo. E, claro, a de seus próprios interesses. Ora, com as informações em mãos, o poder de expor, ou preservar um reino com dificuldades financeiras, ou direcionar uma filha solteira para futuro enlace político-matrimonial, pertencia a esse avô da Reuters, a maior agência de noticias do mundo. De lá para cá, o que mudou? Apenas uma pressão pública por um jornalismo mais isento, mas utópico, inalcançável. Não há dúvidas que as qualidades da humanidade têm ajudado a diminuir bastante essa característica do negócio, a tal ponto de até acreditarmos, em outra pós-verdade, de que era possível.

Então, se essa tal pós-verdade é inerente ao ser humano, joguemos a toalha? Obviamente que não. Nossa história também já provou que somos mestres também em questionar nossas pós-verdades e é, através deste movimento, de melhorarmos. Esse próprio momento mostra que nos aproveitamos das pós-verdades das mídias eletrônicas sociais mais como um conforto do que realmente uma janela para a sociedade. A Pesquisa Brasileira de Mídia de 2016, que entrevistou mais de 15 mil brasileiros, mostrou que as notícias veiculadas na internet são as que menos eles confiam.

E porque ele dá tanta bola, repassa para seus grupos, discute nas mesas de boteco? Porque uma fofoca tem seu papel histórico-social, como bem nos lembrava José Ângelo Gaiarsa, no clássico dos anos 1970, Tratado Geral sobre a Fofoca: uma análise da desconfiança humana. A fofoca e a pós-verdade fazem parte do mesmo jogo neurótico e ambíguo que gostamos, o de ser mal e bom com o apoio dos meus, mas, ao mesmo tempo, desconfiar que a tal verdade não está exatamente ali.

Fazer da pós-verdade algo moderno, desassociado de nossa história e forma de ser, está mais para um desserviço que pouca ajuda a entender os fenômenos das redes sociais. E, como tal, ajuda muito mais na criação de mitos diversionistas, como a ideia do surgimento de uma nova humanidade. Quanto mais repensarmos em nossas motivações e necessidades, o que somos e o que queremos de fato, e o quanto isso está impactando nas novas tecnologias (e não o contrário), melhor encontraremos soluções para nos manter no fio da navalha que é ser humano.

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